OPINIÃO

 

Renata Melo Barbosa do Nascimento é pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro (Neab/Ceam-UnB). Doutora em história pela UnB, é autora da obra Mulheres Negras em Rio, 40 Graus (1955): Representações de Nelson Pereira dos Santos.

 

Renata Melo Barbosa do Nascimento


Sempre oportuno enfatizar que, ao longo do século XX, a literatura e o cinema produziram e disseminaram uma série de representações sobre mulheres negras que fortemente povoaram o nosso imaginário social. Tais representações, enquanto formas de produção de sentidos para as performances e subjetividades de mulheres negras, podem ser identificadas em palavras, gestos, emoções, histórias e imagens que criamos e usamos em nossas práticas cotidianas.


Mais do que imagens inofensivas, as representações operam como dispositivos que orientam a construção de identidades, subjetividades e relações sociais, e têm, por isso, resultados palpáveis na vida social. Ancoradas no imaginário social, as representações tornam-se inteligíveis e comunicáveis por meio de “discursos” que circulam nas mais variadas linguagens: literária, cinematográfica, audiovisual, iconográfica, científica, religiosa, política, filosófica.


As representações veiculadas, portanto, em discursos, palavras, mensagens, imagens cinematográficas e literárias, podem servir de guias para a interpretação e a construção da realidade. Enquanto fenômenos complexos e dinâmicos em ação na vida social, carregados de crenças, valores, opiniões e normas; elas se ligam tanto a sistemas de pensamento mais amplos, como os ideológicos ou culturais, quanto aos meandros das condições sociais e das experiências privadas e afetivas de indivíduos, que podem justificar determinadas violências às mulheres negras dentro de uma lógica patriarcal.


Dessa forma, faz-se fundamental compreender a maneira como a literatura e o cinema nacional representam as mulheres negras, pois a estereotipagem é um elemento chave no exercício de violência simbólica. Trata-se, portanto, de uma forma de exercício do poder simbólico por meio de práticas representacionais que classificam e hierarquizam as diferenças entre as pessoas, fixando limites e exclusões, reduzindo-as a algumas características simples e essenciais tidas como naturais, portanto, essência dos racismos.


A historiografia feminista baseada em teorias interseccionais, principalmente a partir dos feminismos negros, mostra-se bastante reveladora e crítica desse imaginário onde gênero, raça, classe e outros marcadores sociais estão fortemente imbricados produzindo uma especificidade na subjetivação das mulheres negras.


Nesse caso, importante mencionar que, no campo da literatura, a obra do escritor Jorge Amado, por exemplo, que teve várias adaptações para o cinema, também exerceu forte influência na formação desse imaginário sexista e racista em torno das mulheres negras no Brasil, basta um olhar mais atento, obras como Gabriela Cravo e Canela, Jubiabá e Tenda dos Milagres, que hipersexualizam ou colocam suas personagens negras, em posições de subserviência dentro de um verniz de democracia racial.


Nesse sentido, as análises históricas interseccionais de gênero, raça e classe não respondem ao sabor de “modismos” da contemporaneidade. Trata-se de questões urgentes na luta contra o racismo/sexismo e que, não por acaso, foram por muito tempo silenciadas na historiografia brasileira.


Portanto, nada mais urgente que compreender o modo como os filmes também colaboram historicamente, na construção de uma sociedade racista/sexista ao difundir determinadas imagens de mulheres negras nas telas do cinema.


No Brasil é notório o trabalho primoroso das intelectuais negras Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento que, já no final dos anos 1970, chamavam atenção para a hierarquização dos saberes e para a lógica discriminatória que imperava no Brasil, nas Américas e Caribe, atentas como as imagens tinham um poder em reiteradas representações pejorativas de mulheres negras no imaginário social.


Na contemporaneidade, a partir das reflexões históricas dos Movimentos Negros e a crescente reflexão apurada de historiadores/as negras do cinema, notamos produções cinematográficas, que valorizam e respeitam as subjetividades dessas mulheres negras; como Café com Canela (2017) de Glenda Nicácio e Ary Rosa, Filhas de Lavadeiras (2019) de Edileuza Penha de Souza e Um dia com Jerusa (2020) de Viviane Ferreira.


Destacando como o racismo e o sexismo podem ser desconstruídos a partir de um olhar afetivo e transgressor de mulheres que constroem sua própria história. Viva a História! Viva o Cinema!

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