Gersem Baniwa
O dia 19 de abril é um momento dedicado à celebração, reflexão e ação pelo Dia dos Povos Indígenas, que passou a substituir o termo colonialista “Dia do Índio” a partir da Lei 14.402, promulgada em 8 de julho de 2022, de autoria da primeira deputada indígena mulher, Joênia Wapichana. A nova denominação Dia dos Povos Indígenas reforça as identidades originárias, as histórias, a ancestralidade e a diversidade dos povos indígenas como sujeitos epistêmicos, considerando que o termo povo designa uma coletividade social, cultural e econômica regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições e o termo indígena referindo-se àquele que é originário de um lugar, aquele que está antes dos outros.
O dia dos povos indígenas rememora o ano de 1940, quando foi realizado o 1º Congresso Indigenista Interamericano na cidade de Pátzcuaro, no México. Uma das decisões do Congresso foi a escolha da data de sua realização como o Dia do Índio. No Brasil, o Dia do Índio foi instituído em 1943, pelo então presidente Getúlio Vargas e tornou-se uma das principais datas de mobilizações e lutas dos povos indígenas.
A instituição do Dia do Índio representa um marco histórico importante na relação dos Estados nacionais com os povos indígenas, menos colonialista e genocida. Os cinco séculos de invasão e colonização (segundo os indígenas), de conquista (segundo os espanhóis) e descobrimento (segundo os portugueses) eliminou mais de 100 milhões de povos indígenas e milhares de línguas e sistemas de conhecimento, uma das maiores tragédias da história humana que por pouco não exterminou por completo os povos indígenas. Os encaminhamentos adotados pelo referido Congresso significou o início do reconhecimento formal das existências dos povos indígenas e suas alteridades e as possibilidades de continuidade, enquanto povos, étnica e culturalmente diferenciados. Assim, no Dia do Índio, os povos indígenas, por um lado rememoram os anos trágicos da colonização e por outro celebram suas lutas e resistências desde os tempos ancestrais.
Especialmente neste 19 de abril, os povos indígenas do Brasil comemoram conquistas históricas marcantes nas suas trajetórias pós-contato com as sociedades europeias. Trata-se da celebração de um passo etnopolítico importante na materialização dos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988. Pela primeira vez na história do Brasil, os povos indígenas ganham assento em dois dos três poderes da República Federativa do Brasil: Executivo e Legislativo. A partir de 1º de janeiro deste ano, os povos indígenas passam a contar com o Ministérios dos Povos Indígenas sob a liderança de uma mulher indígena e com uma representação também feminina no Congresso Nacional. No âmbito dos estados e municípios, somam-se seis prefeitos, quatro vice-prefeitos e mais 180 vereadores indígenas. Essas conquistas, resultados de muitas, duras e longas lutas, elevam o protagonismo indígena não apenas junto aos seus territórios e comunidades, mas também junto à sociedade nacional e global. Os povos indígenas crescem em importância e necessidade para a sociedade nacional e global, com seus saberes, suas formas milenares e sustentáveis de vida. Mas, como podemos notar, ainda falta conquistar o terceiro poder, o Judiciário, que passa a fazer parte de uma das prioridades e estratégias do movimento indígena.
Há outras conquistas a celebrar, como a da educação que neste ano ultrapassa 300 mil estudantes indígenas na educação básica e mais de 100 mil na educação superior. Outra conquista é o crescimento da população indígena no país que se aproxima de 2 milhões de pessoas (dados preliminares do Censo IBGE ainda em curso), isso para um segmento populacional ameaçado de extinção a pouco menos de quatro décadas, quando essa era de 70 mil pessoas. É importante também destacar as conquistas de terras indígenas que somam 12% do território nacional, formando áreas e regiões altamente preservadas do ponto de vista socioambiental e a relevância da grande diversidade cultural, linguística e epistêmica dos povos indígenas no Brasil.
No entanto, é importante não esquecer as graves ameaças que os povos indígenas continuam sofrendo, principalmente no âmbito de seus territórios, suas culturas e seus saberes. Mais da metade das terras indígenas não estão regularizadas (identificadas, declaradas, demarcadas e homologadas). Outras tantas, mesmo regularizadas, estão invadidas. Quase todas elas sofrem de algum tipo de ameaça de invasão de garimpeiros, fazendeiros, mineradores, madeireiros, pescadores, igrejas e de projetos de infraestrutura (rodovias, hidrovias e usinas hidrelétricas). Atualmente, as tradições culturais sofrem sérias perseguições e ameaças de desaparecimento por parte de igrejas fundamentalistas e setores negacionistas e racistas da sociedade.
Mas, é mais importante ainda considerar que na atualidade reina entre os povos indígenas um sentimento de alívio, de fôlego, de novas possibilidades e de esperança no futuro. Voltaram a acreditar, sonhar, projetar o futuro, suspendendo ainda que parcialmente a ameaça do fantasma do desaparecimento. Recuperaram a autoestima e o direito de sujeitos de suas histórias e seus destinos, com muitas possibilidades e perspectivas. Continuam vivendo e promovendo no mundo experiências de vida fundamentadas na ancestralidade que se renova a todo momento, no pertencimento solidário cósmico e à natureza, fonte de toda sabedoria e do bem viver. Com essas ricas e sustentáveis experiências milenares de vida buscam contribuir com o país e com o mundo, compartilhando solidariamente seus saberes, seus valores, suas culturas e seus recursos materiais e imateriais a abertos para aprender com outras culturas e civilizações.
Assim, se o futuro não está inteiramente garantido, há razões para acreditar que a partir das crescentes conquistas de cidadania, de protagonismo e da consciência de sujeitos históricos de seus destinos, os povos indígenas continuarão sua caminhada cósmica em busca de um bem viver digno, de uma terra sem males, enfim, de uma vida digna, com abundância existencial, dádiva materna da Grande Natureza, que junto com os povos indígenas e outras comunidades tradicionais continuam resistindo a toda sorte de destruição e morte e exalando vida, cuidado, respeito e amor no mundo e ao mundo. É tempo, sim, de sonhar novos e outros sonhos, "futurar" novos e outros futuros e "esperançar" nova e outras esperanças.
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