OPINIÃO

Andrea Donatti Gallasi é professora do curso de Terapia Ocupacional e do Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias em Saúde da UnB-Ceilândia. Coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB.

Andrea Gallassi



A lei 10.216/2001 é considerada o principal marco da Reforma Psiquiátrica brasileira e redireciona a assistência em saúde mental privilegiando o tratamento em liberdade, fora dos hospitais psiquiátricos, e em serviços de base comunitária, com destaque para os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). O Caps realiza o acompanhamento multidisciplinar das pessoas com transtornos mentais e daquelas em uso problemático de álcool e outras drogas (os Caps AD – álcool e drogas); é um serviço de saúde mental criado para substituir as internações em hospitais psiquiátricos. Em 2006, na esteira dos avanços legais sobre o tema saúde mental, álcool e outras drogas, é também sancionada a lei 11.343, que retira a pena de prisão para as pessoas pegas com drogas para uso pessoal, embora com efeitos importantes no aumento do encarceramento de pessoas presas por “tráfico”, já que muitos usuários de drogas acabam sendo enquadrados pela Justiça como traficantes.


Mesmo com tais avanços legais, historicamente as políticas de saúde pública e de saúde mental não se ocuparam devidamente do tema prevenção e tratamento das pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas, deixando essa questão a cargo das instituições de justiça, segurança pública, benemerência, associações religiosas e outras. Essa relativa ausência do Estado possibilitou a disseminação em todo o país de "alternativas de atenção" de caráter total, fechado, com internações de longa permanência baseadas em uma prática centrada na religiosidade – as chamadas comunidades terapêuticas – tendo a abstinência como principal objetivo a ser alcançado e desconsiderando a redução de danos como também estratégia de cuidado. A redução de danos é uma prática de saúde que acolhe, sem julgamento, as demandas de cada situação, de cada pessoa, ofertando o que é possível e o que é necessário, sempre estimulando a participação e o engajamento da pessoa no processo de diminuição/interrupção do seu uso de drogas. É definida como a ética do cuidado.


Desta forma, no esforço de recuperar o atraso histórico na abordagem do tema drogas sob a perspectiva de saúde pública, e assim somar-se aos marcos legais até então conquistados, o Ministério da Saúde desde 2002 vinha desenvolvendo ações e políticas interministeriais voltadas para o cuidado das pessoas em uso problemático de drogas. Destas ações, destacam-se a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a usuários de Álcool e Outras Drogas e os Consultórios na Rua, que desenvolvem ações de cuidado e redução de danos in loco, por meio da abordagem das pessoas nas cenas de uso de drogas.


Os tímidos, porém, fundamentais avanços conquistados ao longo dos últimos 20 anos foram, no entanto, abruptamente subtraídos na última gestão do governo federal, por meio de uma sequência de medidas que recolocaram como opções terapêuticas financiadas pelo poder público, os modelos combatidos de abordagem e tratamento das pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas, como é o caso das internações de longa permanência em comunidades terapêuticas, a internação compulsória, e a diminuição do financiamento dos serviços Caps.


Com isso, é possível considerar que enfrentamos no Brasil pelo menos dois grandes desafios relacionados ao tema drogas e saúde: o recrudescimento das abordagens terapêuticas centradas na internação, reclusão e exclusão dos usuários de drogas, e o desapreço pela ciência como fiadora das melhores escolhas para a tomada de decisão.


A jornada para a reconstrução da política de drogas brasileira na perspectiva da saúde pública, e que considera as evidências científicas, a proteção e o acesso aos direitos humanos fundamentais será longa. Contudo, medidas recentes vêm animando e encorajando aqueles que desejam uma sociedade menos violenta, mais justa e menos desigual. Merecem destaque a eleição para a composição do Conselho Nacional de Política sobre Drogas e a divulgação de editais de ações afirmativas, como a Estratégia Nacional Mulheres na Política sobre Drogas, e Povos Indígenas na Política sobre Drogas, ambos capitaneados pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, do Ministério da Justiça.

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