José Luís Oreiro é professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. É doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

 

Jesús Ferreira Aparicio é professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade do País Basco.

 

 

 

José Luis Oreiro e Jesus Ferreiro Aparicio


A experiência da passada crise da Covid-19 e a recente guerra na Ucrânia aceleraram na Europa o debate sobre a necessidade de repensar o processo de globalização econômica e produtiva em vigor nas últimas décadas.


Esse processo tem sido caracterizado pela terceirização de atividades industriais para outros países e desindustrialização. Numa primeira fase, este processo resultou num deslocamento de parte da atividade da indústria de transformação das economias da Europa Central para as economias menos avançadas do Sul da Europa. Posteriormente, este processo de deslocamento foi direcionado, graças ao processo de ampliação da União Europeia aos países da Europa Central e Oriental, aos países de Leste, especialmente os mais avançados e mais próximos da Alemanha. No entanto, desde o final dos anos noventa esse deslocamento foi estendido aos países do Leste Asiático, com a China ganhando uma posição central, graças ao tamanho de seu mercado interno, à abundante oferta de mão de obra barata e às facilidades para investimento estrangeiro dadas pelo governo chinês.


O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e a redução dos custos de transporte, aliados ao baixo custo da mão de obra, favoreceram que boa parte do tecido produtivo europeu se deslocasse para o Extremo Oriente, levando a um aumento exponencial da oferta de produtos e bens intermediários que favoreceu as economias europeia e asiática, entre outras coisas, graças ao efeito redutor sobre a inflação.


A eclosão da pandemia de covid-19 trouxe à tona os graves problemas decorrentes dessa estratégia para os países europeus. A interrupção das cadeias de abastecimento, o aumento dos custos dos transportes internacionais, juntamente com a mudança na estratégia de desenvolvimento da China baseada numa maior orientação para o mercado interno, mostrou de forma clara e dolorosa os perigos para as economias europeias de uma dependência excessiva das cadeias globais de valor. Nesse sentido, a União Europeia está se juntando tardiamente, ao movimento iniciado nos Estados Unidos, de reindustrializar a sua economia e realizar em solo europeu algumas atividades que até então eram realizadas de forma mais eficiente em outros países com custos mais baixos.


Embora de forma diferente, a guerra na Ucrânia também trouxe à tona os problemas da dependência energética excessiva, neste caso da Rússia, e a necessidade de alcançar maior autonomia energética.
De qualquer forma, se ambos os fatores têm algo em comum, é o reconhecimento da importância dos fatores geopolíticos internacionais no desempenho das economias europeias e a necessidade de repensar as relações econômicas internacionais no curto e médio prazo. O apoio de fato da China, e relutante da Índia, à Rússia na guerra em curso na Europa levanta questões sobre se alguns países dos quais as economias europeias são altamente dependentes podem ser considerados parceiros confiáveis. Se a resposta for negativa, é desejável reduzir progressivamente a atual dependência europeia em relação a estes países, muitos dos quais, não esqueçamos, têm modelos sociais e políticos totalmente afastados dos que vigoram na Europa.


Esta estratégia não deve implicar um maior nacionalismo europeu, isto é, uma redução das relações económicas da Europa no estrangeiro, mas sim uma recomposição das mesmas para economias social, cultural e politicamente mais próximas daquelas prevalecentes na Europa. É nesse sentido que entendemos que é absolutamente necessário um aprofundamento das relações econômicas, mas também políticas, entre a União Europeia e os países da América Latina, com o Brasil tendo um papel central nesse processo.


A União Europeia não tem possibilidade de inverter totalmente as atuais cadeias de valor globais para o território europeu. Nesse sentido, apoiar e incentivar os investimentos produtivos, não apenas financeiros, europeus na América Latina pode ser uma oportunidade clara para promover a integração econômica entre países que compartilham um conjunto semelhante de valores sociais e políticos e que, em sua grande maioria, podem ser considerados parceiros confiáveis. Apoiar, a partir de países e instituições europeias e de países latino-americanos, não só a integração comercial e financeira, como tem sido a regra geral nas últimas décadas, mas fundamentalmente a integração produtiva pode ser um instrumento eficaz para promover o crescimento europeu e o desenvolvimento económico na América Latina, bem como para consolidar valores comuns, entre eles, o respeito pela democracia, que as nossas sociedades partilham.


Para que isso seja possível, contudo, a União Europeia precisa adotar uma postura menos arrogante com os países da América Latina. Em particular a insistência da União Europeia em excluir as compras governamentais como instrumento legítimo de política industrial dos países do Mercosul poderá inviabilizar a realização do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, empurrando este último bloco de forma irreversível para a esfera de influência da China. É absolutamente necessário que as autoridades da União Europeia entendam que os países do Mercosul estão interessados em um comércio justo com a Europa, o que significa abandonar o modelo de comércio centro-periferia no qual os países do Mercosul, como o Brasil, são meros exportadores de produtos primários para a Europa e importadores de produtos manufaturados europeus. O acordo Mercosul-União Europeia deve contemplar mecanismos de desenvolvimento produtivo que permitam a produção e exportação para a Europa de produtos com maior valor adicionado.


Por fim, deve-se ressaltar que a recém aprovada legislação da União Europeia sobre a proibição de importação de produtos provenientes de áreas desmatadas deve diferenciar o desmatamento legal – previsto na legislação brasileira, por exemplo – do desmatamento ilegal. Caso a Europa proíba as importações de produtos advindos de qualquer tipo de área desmatada – não importa se de forma legal ou ilegal – os produtores brasileiros de soja, café e carne não só não terão incentivo para seguir as regras de desmatamento vigentes hoje no Brasil, como ainda não terão alternativa que buscar mercados fora da União Europeia, o que certamente vai aprofundar a dependência do Brasil com respeito a China.

 

Publicado originalmente em 24 de agosto no jornal Valor Econômico.

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