Elizabeth Ruano, Larissa Ferro e Lays Gonçalves
Com a participação de aproximadamente oito mil indígenas, de diferentes povos, territórios e biomas, promovida pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), se realizou em Brasília, de 11 a 13 de setembro de 2023, a terceira marcha nacional. A primeira ocorreu em Brasília, de 9 a 14 de agosto de 2019, com participação aproximada de três mil indígenas pertencentes aos 100 povos, dos 305 existentes no Brasil, localizados em 26 estados brasileiros. A segunda marcha, também na capital federal, entre 9 a 11 de setembro de 2021, quando havia começado a vacinação contra o Covid-19 dos povos indígenas como grupo prioritário, e havia diminuído o risco biológico de contaminação .
A terceira marcha incluiu debates, rodas de conversa, lançamento de livros e cartilhas, grupos de trabalho e apresentações culturais. O objetivo da marcha foi, segundo a ANMIGA, reconectar a potencialidade das vozes das ancestralidades, fortalecer a ação das indígenas em todo o território, debater e propor novos diálogos de incidência na política indígena do Brasil. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), presidida pela primeira vez por uma indígena mulher, Joênia Batista de Carvalho, da etnia Wapichana, forneceu apoio logístico, por meio da Coordenação-Geral de Promoção da Cidadania.
No dia 13 de setembro pela manhã foi realizada uma passeata entre a Fundação Nacional de Artes (Funarte) e a Esplanada dos Ministérios, a qual foi conduzida por carro de som que amplificou os discursos e compromissos com as pautas do movimento de indígenas mulheres. Por fim, parlamentares e movimentos sociais uniram-se ao ato no momento final da passeata. Pela tarde, a presença das ministras, Cida Gonçalves (MMFDH), Marina Silva (MMA), Luciana Santos (MCTI) e Anielle Franco (MIR), e a representação dos Ministérios de Comunicações, Cultura, Educação e Saúde demonstrou a importância do Ministério dos Povos Indígenas, criado pelo governo Lula (2023-2026), em 1º de janeiro de 2023, presidido pela indígena Sônia Bone, da etnia Guajajara, na receptividade governamental da mobilização indígena.
Contrastando radicalmente com a ação dos dois governos predecessores, observou-se o esforço coletivo em prol da transversalização interministerial, pela garantia dos direitos indígenas, em especial entre as pastas dos Povos Indígenas, de Meio Ambiente e Mudança Climática e de Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos. Essa articulação foi evidenciada no anúncio do Acordo de Cooperação Técnica entre o Ministério das Mulheres e o Ministério dos Povos Indígenas para a implementação de Grupo de Trabalho para pensar fluxos de atendimento e protocolos específicos para atendimento de casos de violência contra as mulheres indígenas. Do mesmo modo, anunciaram o esforço pela adequação de políticas públicas voltadas à prevenção e enfrentamento das violências contra mulheres que respeitem suas especificidades étnicas. Dentre as quais se destacam: i) a reformulação dos fluxos de atendimento e protocolo específico nas casas da mulher indígena em cada bioma: ii) o projeto Guardiãs dos Territórios que visa a formação de indígenas para trabalharem com os órgãos públicos no enfrentamento às violências; iii) o pacto nacional de prevenção aos feminicídios; iv) a elaboração conjunta da Política Nacional de Cuidados e de enfrentamento à violência política contra mulheres, que leve em conta as especificidades étnicas.
Na tarde do dia 11 de setembro houve a simulação de um júri popular de mulheres que trouxe relatos e denúncias de crimes e violências cometidos contra suas comunidades e seus corpos-territórios em diferentes regiões do Brasil. O Veredito proferido pela indígena advogada e mestra em direito Kari da Silva, da etnia Guajajara, considerou o Estado Brasileiro culpado, seja por omissão ou perpetuação de estruturas racistas e patriarcais que negam direitos.
Em seguida, foi lançada a cartilha “Conhecendo os direitos básicos e construindo estratégias de enfrentamento às violências contra o nosso corpo-território” (ANMIGA, 2023). Tal documento, foi desdobramento do projeto “caravana das originárias”, realizado durante o ano 2022, onde as indígenas percorreram o território nacional promovendo ações de fortalecimento, acolhimento e reflexão entre as indígenas dos seis biomas - Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica e Pampa. A cartilha busca instrumentalizar as indígenas no enfrentamento à violência de gênero. O material abarca, de forma didática, orientações em relação às tipificações de violências contra as mulheres: física, sexual, moral, psicológica, patrimonial e política. São apresentados ainda, os passos necessários para acessar o poder público para protocolar denúncias e demandar acolhimento, importante conteúdo que busca difundir conhecimentos legais para efetivação do direito de acesso à justiça por essas mulheres. A complexidade das temáticas apresentadas no evento se dá nas intersecções, oriundas do sistema colonial patriarcal e racista, que permeiam as vivências e violências sofridas pelas indígenas gerando entraves para efetivação de seus direitos.
As mobilizações indígenas em Brasília se apresentam com sistematicidade, exemplo disso é o Acampamento Terra Livre, cuja primeira edição ocorreu em 2004 e teve sua 20ª edição em 2023. Desse modo, percebe-se que a ação política indígena tece diálogos dentro e fora de seus territórios para alcançar suas pautas. Aquelas tidas em algum momento histórico como exclusivas de mulheres passaram a tensionar gradativamente as agendas do movimento indígena e do Estado brasileiro. Nesse repertório, a reivindicação territorial, temática prioritária, é complexificada conectando-se indissoluvelmente às violências contra seus corpos-território de indígenas mulheres.