OPINIÃO

Fernando Silva é bibliotecário da Biblioteca Central (BCE/UnB) desde 2005. Leitor assíduo e membro do Conselho Curador do Espaço POP.

Fernando Silva

 

Em 1988 eu ganhei de aniversário um carrinho movido a pilhas muito poderoso. Subia nos obstáculos mais difíceis, esse carrinho, com suas rodinhas poderosas e enormes. Um primo, que nessa época morava conosco, logo se interessou por aquele brinquedo e me ofereceu uma troca irresistível: em troca daquele carrinho, ele me daria uma grande caixa repleta de gibis. Eram edições da Turma da Mônica ainda na Editora Abril, uma coleção bem completa de Homem Aranha, Batman e Capitão América. Ao todo devia ser em torno de 200 exemplares em formatinho, em excelente estado de conservação. Guardei todas no baú que havia em minha cama e as lia escondido de meus pais, que se descobrissem a troca, certamente me fariam desfazer o negócio. Após algum tempo, isso inevitavelmente aconteceu, para minha frustração. O carrinho que recebi de volta, que antes me divertia, passou a ser abandonado, pois só pensava em ter de volta aquela caixa de sonhos, e ficou apenas a decepção da leitura incompleta.

 

Essa história serve para ilustrar o quanto as histórias em quadrinhos eram importantes na vida das crianças que viveram até a década de 1990. Creio que grande parte da Geração X e dos Millenials foi alfabetizada ou desenvolveu algum gosto pela leitura graças aos gibis. Obviamente, tudo era diferente. As revistas em quadrinhos eram distribuídas quase que integralmente nas bancas de revista, em uma tiragem muito superior às que vemos hoje. Essas bancas de revista foram de primordial importância na formação de colecionadores e leitores de histórias em quadrinhos. Há 24 anos, quando visitei a UnB pela primeira vez, lembro de ter conhecido a Banca do Gilson, no ICC Sul, onde comprei alguns números antigos do Sandman da Editora Globo. O Gilson, de saudosa memória, sempre assobiando alegremente alguma canção que ouvia em seu radinho, não devolvia alguns títulos não vendidos e os mantinha nos fundos da banca, onde leitores de quadrinhos passavam um bom tempo em busca de algum tesouro perdido. Nessa época, a única forma de se completar coleções era peregrinando por bancas e sebos da cidade, e às vezes encontrar um item faltante na coleção era o necessário para que “ganhássemos o dia”.

 

Hoje a distribuição e consumo das histórias em quadrinhos é completamente diferente. As revistas em quadrinhos, nos dias atuais, atingem um público muito mais diversificado. Vistas inicialmente como um meio de iniciação à leitura, passando pela fase em que foram consideradas "literatura de vanguarda", com o surgimento dos quadrinhos de Gaiman, Frank Miller e Alan Moore, na década de 1980, atualmente os quadrinhos cada vez mais assumem o papel de uma arte narrativa própria, complexa e aberta a possibilidades de criação infinitas.

 

Por outro lado, o ritmo de lançamentos hoje é tão frenético que nem sempre o leitor comum tem acesso às novidades do mercado editorial. Apenas os colecionadores mais abastados (e cada vez mais exigentes, por vezes mantendo em sua coleção apenas edições em capa dura), conseguem ter acesso às publicações luxuosas e caras. E mesmo esses nem sempre encontram um ponto de equilíbrio entre o ritmo de leitura e o volume de aquisições, fazendo com que itens de belíssima construção permaneçam intocados nas estantes.

 

Nesse contexto, as bibliotecas assumem um papel crucial na guarda e disseminação das histórias em quadrinhos. Se nas décadas passadas as gibitecas eram destinadas apenas às bibliotecas infantis, a riqueza narrativa dos romances gráficos despertou o interesse de diversas bibliotecas, que passaram a dar destaque especial aos quadrinhos em seus acervos.

 

Na UnB, foi inaugurado, em 2018, o Espaço POP, que abriga uma riquíssima coleção de histórias em quadrinho. Aberto a toda a comunidade acadêmica para empréstimos e à comunidade externa para consulta local, conta com uma coleção de mais de 1500 títulos de HQs. O acervo é um dos mais queridos e consultados pelo público que frequenta a BCE. Desde sua inauguração, houve mais de 8600 empréstimos de obras do Espaço, o que coloca as HQs entre os itens mais procurados do vasto acervo da BCE.

No dia do quadrinho nacional, celebrado neste 30 de janeiro, homenagem à Ângelo d’Agostini, precursor das histórias em quadrinhos, fica o convite para que você, ainda não iniciado na nona arte, conheça essa forma narrativa tão poderosa, capaz de nos transmitir tantas emoções ao unir, de forma tão magistral o texto e a imagem.

 

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