Rebecca Lemos Igreja e Bárbara Crateús Santos
O ano era 1997. Em Pirituba, bairro da zona norte da capital paulista, Simone André Diniz lia anúncios de emprego em um jornal de grande circulação do estado. Ao ligar para o contato da vaga, a primeira coisa que lhe perguntaram foi se era negra. Quem me atendeu foi a mãe da pessoa que estava precisando dos serviços de limpeza, ou seja, a 'patroa'. A primeira coisa que ela me perguntou ao telefone foi se eu era negra, não perguntou idade, nem nada. Quando disse que era negra, logo ouvi que não preenchia os requisitos. No mesmo instante agradeci pela atenção, desliguei.
Simone registrou boletim de ocorrência. O inquérito nº 10.541/97-43 foi encerrado em 14 dias e encaminhado ao Ministério Público estadual, que pediu o arquivamento do caso em juízo. Como fundamento, o MP justificou não haver "qualquer ato de racismo" ou "base para oferecimento de denúncia" de crime tipificado no art. 20 da Lei 1.7716/89 (Lei Caó). O magistrado acatou a manifestação ministerial e arquivou o caso. Nada insólito. Em outubro daquele ano, o Brasil foi representado na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da OEA (CIDH) pela a Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP) e o Instituto do Negro Padre Batista.
Criado por meio de uma campanha da Organização das Nações Unidas (ONU) e o Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), em 2013, o dia Mundial da Discriminação Zero nasce em um contexto de luta contra a discriminação contra pessoas que vivem com HIV, incluindo igualmente qualquer outro tipo de preconceito social. Nesta senda, a campanha foi ampliada para uma perspectiva de direito à uma vida digna independente da raça, da etnia, da origem, da orientação sexual, da identidade de gênero ou religião.
Discriminação é uma expressão das desigualdades e não se resume a um debate moral e subjetivo. Contra ações discriminatórias individuais há remédios jurídicos específicos como o art. 140 §3º do Código Penal e o artigo 2º A da Lei 7.716/1989, por exemplo. O campo dogmático jurídico tem procurado respostas jurídicas e políticas para promover a igualdade e enfrentar a discriminação. Seu conceito jurídico é demarcado como uma cláusula de proibição no art. 3º, IV da Constituição Federal; como a reprovação jurídica de violações ao princípio da igualdade. Temos, portanto, uma base constitucional, um pacto de nação, baseado em uma ideia de igualdade plena.
De uma maneira geral, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação implica na necessidade de produzir um tratamento desigual para atender as necessidades específicas daqueles grupos mais vulnerabilizados, cuja abstração universalista do direito à igualdade- baseado em um sujeito de direito universal- não se aplica em sua materialidade.
Para diminuir a distância entre o real desigual e a pretensão de uma igualdade idealizada, existem estratégias como as ações afirmativas, que servem para fortalecer direitos daqueles em situação de desvantagem social como pessoas negras, mulheres, pessoas vulneráveis financeiramente e pessoas com deficiência5. Ademais, há leis protetivas específicas como o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/03)e a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/10), Lei do Racismo (lei nº 7.716/89; alterado pela Lei 14.532/23), entre outras normativas.
Mas não é só isso. É preciso ir além da norma. Voltemos ao caso Simone Diniz. A vítima possuía uma norma protetiva para penalizar o agente promotor da violência racial, contudo, foi revitimizada pelo Ministério Público. A aplicação de critérios que seriam juridicamente válidos é a forma de cognição do direito que segue os passos de um acesso à justiça restrito. Para além disto, quais repercussões jurídico-políticas observamos após a responsabilização do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos? É preciso disputar protocolos e procedimentos afinados com o projeto constitucional para garantir a efetividade de direitos fundamentais.
Por outro lado, discriminação e o preconceito mobilizam e fundamentam guerras e processos genocidas, como os que estão ocorrendo na Palestina e a escravização moderno-colonial que produz efeitos concretos na vida de pessoas negras e de mulheres, por exemplo.
De outro modo, manifestações discriminatórias tem sido centrais para o imaginário político-social do paradigma neoliberal, que centraliza um tradicionalismo moral excludente em resposta às políticas de combate à desigualdade social. Há um ressentimento contra políticas públicas de justiça social. Cresce uma extrema-direita global e anti plural que tem disputado uma noção de povo e de um sujeito único, moralmente definido nos valores tradicionais e religiosos e na reivindicação da família como uma tentativa de recuperação de um passado autoritário fundado em práticas escravistas.
Qual o horizonte de transformação? Aproveitemos esta data para fomentar a discussão de estratégias políticas e jurídicas para uma experiência de cidadania plena e plural para todas as pessoas, sem distinção.
Referências
1. A vaga era para empregada doméstica. Na quarta linha do anúncio, o principal requisito da candidata: "preferência branca". Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1811200620.htm. Acesso em 17 de julho de 2023.
2. Entrevista concedida por Simone Diniz, disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7688877/mod_resource/content/2/Governo%20brasileiro%20e%CC%81%20condenado%20por%20arquivar%20caso%20de%20racismo.pdf Acesso em 17 de julho de 2023. O anúncio de emprego consta no relatório nº 66/06 da CIDH: “Na data de 2 de março de 1997, a senhora Aparecida Gisele Mota da Silva, fez publicar na parte de Classificados do jornal A Folha de São Paulo, o seguinte anúncio: “doméstica. Lar. P/ morar no empr. C/ exp. Toda rotina, cuidar de crianças, c/docum. E ref.; Pref. Branca, s/filhos, solteira, maior de 21a. Gisele”. Disponível em: http://www.cidh.org/annualrep/2006port/brasil.12001port.htm . Acesso em 17 de julho de 2023.
3. Informações detalhadas disponíveis no Relatório nº 66/06 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Acesso em: http://www.cidh.org/annualrep/2006port/brasil.12001port.htm Acesso em 17 de julho de 2023.
4. RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2008.
5. A lei cotas nas universidades (Lei 12.711/12) e nos concursos públicos (Lei 12.990/14).
6. Brown.Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Trad. Mario A. Marino, Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo. Editora Filosófica Politeia, 2019. 256 p.
7. IGREJA, RL. Populismo, desigualdade e a construção do “outro”: uma abordagem antropológica da extrema direita no Brasil. Vibrante: Antropologia Virtual Brasileira , v. 18, p. e18802, 2021.
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