OPINIÃO

Josué Jean Daniel Etienne é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável (PPG-CDS) do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS), mestre em Administração e Ciências de Dados, haitiano residente no Brasil desde 2011.

Josué Jean Daniel Etienne

 

Venho de longe, refugiado, sonhador, lutador. É quase noite ou dia? Perdão, perdi a noção do tempo! Cansado, revoltado, angustiado. Terra, céu, quero dormir, sorrir, viver, atender ligações com o DDD do Haiti sem preocupações de alguém do outro lado da linha me contando mais uma tragédia. Não sei se é a minha sensação de impotência, raiva gerada pela omissão da comunidade internacional em relação à crise generalizada que tomou conta do país caribenho. Mas ultimamente me olho no espelho com vergonha, de não conseguir ajudar o meu povo. O Brasil me deu onde colocar a cabeça para não residir no estado de imperfeição imposto por discursos imperialistas. Tomadas de decisões que requerem habilidades e sabedoria.

 

As raízes da crise haitiana remontam à chegada de Cristóvão Colombo à ilha La Española (Haiti e Santo Domingo), em 1492. Para dar lugar às culturas dos invasores europeus, ocorreu o desmatamento, extermínio dos indígenas moradores da terra, que logo seriam substituídos por africanos reduzidos à condição de escravos. A abolição da escravatura em 1804 contra os colonizadores franceses despertou grandes receios de que outras colônias europeias vizinhas seguissem o mesmo exemplo. A conquista da independência provocou um longo período de isolamento internacional, a França obrigou o Haiti a pagar uma indenização de 150 milhões de francos (cerca de US$ 21 bilhões hoje), pagável em cinco parcelas, e uma redução tarifária de 50% sobre as importações francesas em troca do reconhecimento diplomático.

 

Desastres naturais, ocupações, intervenções militares internacionais e ajudas humanitárias fracassadas causaram uma crise multidimensional: política, econômica, ambiental, de segurança e humanitária. Quadro que deixa o país caribenho atolado há anos na constante incapacidade de lidar com os seus próprios desafios e provoca uma eterna dependência da comunidade internacional. Desde o ano de 2000, a queda livre da sociedade haitiana contribuiu para que as gangues se tornassem uma ferramenta nas mãos de políticos que desejam alcançar e se manter no poder.

 

Com a certeza da impunidade, o número de assassinatos, tráfico de drogas, sequestros e violência sexual aumentou significativamente. No ano de 2020, grupos armados mataram o então presidente Jovenel Moïse e, na madrugada do dia 7 de julho de 2021, tomaram o principal complexo judicial do país. Um ano depois, em julho de 2022, o Palácio da Justiça foi invadido. Além de roubos e destruição de processos e arquivos, essas ações disseminaram medo e colocaram em xeque o poder das forças estatais frente ao poder das gangues.

 

No ano de 2024, o Haiti entrou numa situação sem precedentes, o aeroporto Internacional Toussaint Louverture, o principal do país, foi atacado, com aviões alvejados e todas as linhas aéreas suspendendo voos tanto nacionais quanto internacionais. Criminosos invadiram os portos do país, saqueando centrais de armazenamentos e contêineres, inviabilizando todas as operações marítimas. A única empresa marítima que ligava o Haiti com o internacional Caribbean Port Services anunciou a suspensão de todas as suas atividades. Por via terrestre a fronteira já estava fechada, devido ao conflito hídrico (construção de um canal no lado haitiano) já existente entre os dois países da ilha (Haiti e República Dominicana). Devido à falta de mercadorias no país, a inflação aumenta exponencialmente. Diariamente os preços crescem e os habitantes não têm condições de compra. Ninguém sai e tampouco consegue entrar no país, com exceção dos cidadãos de outros países cujo respectivos consulados os tiram em voos privados de helicóptero.

 

Políticas e serviços públicos passam de insignificantes para inexistentes no país caribenho, provocando assim grave insegurança alimentar, falta de acesso a eletricidade, água potável, saneamento, cuidados médicos e educação. O país vive um colapso. Num estado de direito, as pessoas vão para prisões por causa de crimes cometidos. O povo haitiano perdeu o direito de ir e vir e vive como se estivesse em uma prisão a céu aberto. Na mídia, por vezes o Haiti é tratado como uma panela de pressão, em que os “donos do mundo” não querem desligar o fogo. Muitos dizem que não há saída. O povo haitiano está cansado da indiferença e de estar sob o governo de políticos não eleitos, escolhidos por uma comunidade internacional. O povo haitiano deseja retomar o seu destino nas próprias mãos.

 

ATENÇÃO – O conteúdo dos artigos é de responsabilidade do autor, expressa sua opinião sobre assuntos atuais e não representa a visão da Universidade de Brasília. As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seu conteúdo.