OPINIÃO

 

Alexandre Bernardino Costa é professor associado da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH/CEAM/UnB); Co-líder do grupo de pesquisa CNPq e O Direito Achado na Rua. Membro do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Alexandre Bernardino Costa

 

De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), além das tentativas de homicídio e ameaças de morte, entre 1964 e 2016, foram registrados os assassinatos de 2.507 pessoas em conflitos no campo, especificamente ocasionados na luta pela Reforma Agrária ou na defesa e retomada de territórios tradicionais. Dessas mortes, 1.833 (73%) se deram após a redemocratização do País, ou seja, a partir de 1985. Quanto aos massacres no campo, a CPT contabiliza, de 1985 a 2019, um total de 50 casos ocorridos em todo o Brasil, sendo 29 no estado do Pará, 7 em Rondônia, 4 em Minas Gerais, 2 na Bahia, 2 no Mato Grosso, 2 no Rio Grande do Sul, e 1 nos estados do Amapá, Amazonas, Espírito Santo e Tocantins. Tais dados são compilados anualmente nos Cadernos de Conflitos no Campo da CPT, que fazem uma análise quantitativa dos casos a partir de uma série de variáveis referentes ao perfil das vítimas e dos conflitos sociais nos quais estavam inseridas essas pessoas. De um universo de 1.833 assassinatos ocorridos entre 1985 e 2018, 48 casos se caracterizam como massacres, tidos como crimes de homicídio em que há 3 ou mais vítimas executadas no mesmo evento. Do total de 50 casos analisados, 19 deles ocorreram entre 1985 e 1987 (sendo 10 apenas no sul do Pará), 7 entre 1993 e 1996 (incluindo o mais conhecido caso, ocorrido em Eldorado dos Carajás), após os quais nenhum massacre no campo foi registrado até 2001, quando os casos de violência recomeçam (com 11 casos entre 2001 e 2012) e se intensificam a partir de 2017 (7 casos entre 2017 e 2019).

 

A UnB realizará uma pesquisa junto ao Ministério da Justiça, e em associação com a Comissão Pastoral da Terra, sobre os massacres ocorridos desde a Nova República, após a ditadura, em 1985. O problema de partida é compreender quais fatores podem estar associados ao sistema de justiça criminal brasileiro no que concerne à produção da impunidade de mandantes e executores de massacres ocorridos no campo brasileiro entre os anos de 1985 e 2019. Tal fenômeno ocorre devido a falhas nos procedimentos investigatórios? Decorre da ausência de provas substantivas de autoria e materialidade dos crimes? Por negligência do órgão acusador? Por omissão protetiva do órgão julgador? Qual o impacto da intervenção das pessoas defensoras dos acusados nos inquéritos e processos criminais instaurados? Compreender as razões da impunidade em tais crimes exige análise mais abrangente do conflito social que constitui o contexto dos casos de massacres no campo. Por isso, torna-se necessário responder outras questões convergentes, tais como: quais são as características centrais dos conflitos sociais que ensejaram os massacres de trabalhadoras(es) rurais, membros de povos tradicionais e/ou militantes de movimentos sociais? Quais papéis sociais eram desempenhados pelas vítimas e pelos autores à época dos crimes? Que características de uma possível cultura institucional no trato de conflitos agrários podem ser identificadas em documentos policiais, do Ministério Público e do Judiciário? Como são tratados no sistema de justiça criminal os casos de massacres no campo brasileiro?

Mais que “explicar” as razões jurídico-procedimentais que ocasionaram a impunidade nos casos de massacres no campo, o projeto coloca-se diante do problema relacionado à compreensão dos diversos atores sociais envolvidos em cada caso (vítimas, autores, autoridades, grupos sociais, empresas, organizações etc.), de modo a constituir um panorama social mais amplo dentro do qual os procedimentos criminais de apuração estavam inseridos. As respostas permitirão construir um novo olhar para a complexidade dos conflitos sociais que resultaram em massacres no campo brasileiro. Com isso, tanto medidas preventivas podem ser adotadas por parte de autoridades e sujeitos envolvidos em graves conflitos no campo, como os próprios procedimentos criminais de apuração podem ser aperfeiçoados, em prol de uma sensível redução dos casos que resultam em impunidade no Brasil.

 

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