OPINIÃO

Raissa Roussenq Alves é pesquisadora, doutoranda em direito pela UnB, especialista em estudos afro-latino-americanos pelo Clacso, integrante do grupo de pesquisa "Informais: Trabalho, Interseccionalidades e Direitos" da UnB. 

Raissa Roussenq Alves

 

A cada 13 de maio somos confrontados com as disputas em torno da memória sobre a sanção da Lei Áurea em 1888. Além dos esforços de resgate do papel ativo da população negra na abolição da escravatura, também permanece em questão em que medida a escravidão continua a definir e estruturar a sociedade brasileira. Parte importante dessa discussão está relacionada à permanência de mulheres negras como as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidado, em condições que muito se assemelham às que suas antepassadas vivenciaram quando legalmente escravizadas.

 

Embora o combate ao trabalho escravo contemporâneo tenha sido instituído como política do Estado brasileiro desde pelo menos 1995, e com mais intensidade a partir de 2003, o resgate de trabalhadoras domésticas começou a ocorrer de forma sistemática apenas a partir de 2017. Até a promulgação da Emenda Constitucional nº 72/2013, as trabalhadoras domésticas não tinham reconhecidos direitos trabalhistas básicos, como o limite de jornada de trabalho. E somente com a Lei Complementar nº 150/2015 ficou previsto expressamente a possibilidade da fiscalização do domicílio do/a empregador/a pelos/as auditores-fiscais do trabalho. Lembrando que a fiscalização do trabalho doméstico é a única que exige negociação com o patrão, comprometendo sua efetividade. Para resguardar a atuação de seus agentes, a fiscalização tem acionado o Judiciário antes da realização das operações.

 

É nesse contexto que precisamos chamar atenção para o número crescente de resgates de trabalhadoras domésticas escravizadas durante décadas nas casas de famílias brasileiras. Sob o argumento de que fazem parte da família, essas mulheres são submetidas ao trabalho infantil e a toda sorte de violências, têm seus direitos à saúde e à educação negados, e são isoladas do convívio de suas famílias e da sociedade em geral. Em 2022, Maria de Moura foi resgatada após 72 anos em poder da mesma família no Rio de Janeiro, sendo o caso de escravidão contemporânea mais duradouro identificado até o momento.

 

Em junho de 2023, Sônia Maria de Jesus foi resgatada pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel na casa do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Jorge Luiz de Borba, e de sua esposa, Ana Cristina Gayotto de Borba, em Florianópolis. Natural de São Paulo, Sônia foi levada aos nove anos de idade pela sogra do desembargador sob a desculpa de oferecer acolhimento à menina, que havia perdido a audição após ser vítima de violência doméstica. Sua mãe, trabalhadora doméstica em situação de vulnerabilidade e sem outra rede de apoio disponível, concordou com aquela situação de forma temporária e com a condição de que fosse mantido o contato familiar. O acordo não foi cumprido, e a família de Sônia passou os últimos quarenta anos sem saber de seu paradeiro, nem mesmo se continuava viva, apesar das buscas incessantes realizadas por sua mãe e seus irmãos.

 

As condições únicas do caso de Sônia o levaram a ser tema de audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal no dia 6 de maio deste ano. Além de ter sido resgatada na casa de um membro do Poder Judiciário, decisão do Superior Tribunal de Justiça, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, não só autorizou a visita da família do desembargador ao estabelecimento no qual a trabalhadora estava sendo acolhida, como permitiu que, caso demonstrasse vontade inequívoca, esta poderia retornar ao cativeiro. Vale ressaltar que Sônia não foi alfabetizada, nem aprendeu a Língua Brasileira de Sinais. Após comparecer ao abrigo com uma grande comitiva, o desembargador a levou de volta para sua casa, sendo o primeiro caso de “desresgate” que se tem notícia desde o início das operações de fiscalização.

 

Os irmãos de Sônia ainda aguardam uma resposta definitiva do Judiciário. Se confirmada, a negativa de resgate constitui resultado trágico para a trabalhadora e sua família, e um precedente perigoso para as inúmeras trabalhadoras domésticas que venham a ser resgatadas em operações de fiscalização. Mais do que isso, é um atestado de que a sociedade brasileira ainda precisa percorrer um longo caminho para concretizar a abolição da escravatura proclamada em 13 de maio de 1888.

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