OPINIÃO

Alexandre Simões Pilati é professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB. É autor, entre outros, de Poesia em sala de aula e Pasolini: poesia, paixão e política. Foi vencedor do Prêmio Candango de Literatura (2022) com o livro de poemas Tangente do cobre.

Alexandre Pilati

 

Num tempo como o nosso, parecerá estranho afirmar que o grande escritor é aquele que atua com a consciência de que é menor do que a literatura. A primazia da individualidade e da espetacularização da personalidade define como tendência do campo literário atual a inversão dessa hierarquia, tão importante para que as obras literárias humanamente significativas possam surgir e encontrar lugar relevante na vida social.

 

Entretanto, a permanência do escritor e a garantia da importância de seu posto na história só acontecem quando seu trabalho realiza-se materialmente através de uma relação com o mundo que implique apequenar o ego e expandir a subjetividade. O ego precisa de um veículo para se expressar; a subjetividade, por sua vez, faculta a configuração legítima do ritmo real da vida, que existe concretamente para além da personalidade do escritor, que deve ser um “enamorado da realidade”. Eis a desafiadora tarefa que se propõe alguém que intenta criar a literatura em coerência com as reais exigências do seu tempo.

 

O traço específico da luta artística do escritor é o manejo da palavra. Isso o distingue de outros artistas: sua matéria é original e integralmente preenchida de historicidade. Um velho russo dizia que a palavra é o "signo ideológico por excelência", ou seja: na palavra estão gravadas as lutas de uma sociedade inteira. Ao trabalhá-las, o escritor está lidando com ferramentas e processos que não foram por ele criados, embora tenha, no gesto poético, alguma liberdade para despir as palavras do encanto empobrecedor do fetichismo da vida cotidiana. E só terá essa liberdade se souber que escrever é trabalhar lucidamente as oportunidades e as limitações da mimese da vida.

 

O escritor não diz o que quer, individualmente, dizer. Ele diz o que a palavra, como ingrediente da história humana, possibilita dizer. O que se exige do escritor, nesses termos, é a humildade de reconhecer que escrever é a tentativa de descoberta do que é possível dizer no horizonte das paixões humanas. Assim, o texto literário não é a expressão imediata (e por isso geralmente falsa) das ideias, crenças, ou sentimentos de quem o escreve. O que é imediato, em nosso mundo, fica para a língua da mercadoria; na contramão desta, a linguagem literária assume funções de mediação, problematização e inquietude. Destarte, a literatura (e não o escritor) acena com uma possibilidade de desalienação, de vida livre, interpretada e vivida pela legítima dialética indivíduo - comunidade.

 

Paulo Freire, no seu belo ensaio "A importância do ato de ler", dizia, em tom materialista, que: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra". Com isso, ele apontava, desde o ângulo do leitor, para dois âmbitos distintos que sempre dialogam: o do mundo e o da palavra. Ambos se retroalimentam porque o aprendizado da leitura complexifica a interpretação da realidade. Processo semelhante ocorre no trabalho de transfiguração subjetiva do mundo ao qual se dedica o escritor. Escrever, pois, não é mero refletir mecânico de uma realidade que preexiste em relação ao texto. Mais do que isso, o trabalho com a palavra é uma tentativa de descobrir potências de inteligibilidade do mundo e de, configurada a obra, apontar os caminhos possíveis de enriquecimento e de transformação da vida. Ao adotar essa posição, o escritor liberta-se dos efeitos alienantes do objetivismo e do subjetivismo. Quando isso acontece, a literatura existe e o escritor permanece.

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