OPINIÃO

Max Müller Cerqueira Sobrinho é técnico administrativo em Educação na Diretoria de Esporte e Atividades Comunitárias (Deac/UnB). Mestre em Literatura e poeta nordestino.

Max Müller Sobrinho

 

Nordeste, que é Norte, sentido a se buscar na vida, e Leste, orientação de onde se vem. Nordeste, primeiras terras avistadas pelos que achavam que haviam “descoberto” algo por aqui... Nordeste, onde o sol brilha primeiro, nosso Japão brasileiro. Nordeste, cujos sítios arqueológicos piauienses já apontam para a presença dos primeiros humanos das Américas, há mais de quarenta mil anos... Nordeste, quem te viu, quem te vê? Quem te enxerga por outros jeitos de ser?

 

Eu, nascido de ti, Nordeste, bem ali, na divisa entre o sul baiano e o norte mineiro, consigo ver-te, por outras lentes e vertentes, para além de linhas divisórias, limites traçados pelas modernidades geográficas, ou pelos precisos léxicos dos dicionários e exatidões previsíveis dos sintagmas. Nordeste, és para mim digressões, metáforas, paradigmas. Estás além do visto, do ouvido, do sentido da epiderme do mapa que te descreve.

 

És ser-tão aqui, quanto ali, lá e acolá. E além, onde as vistas não conseguem mais focar no horizonte da realidade imediata. És papiro de textos sobrepostos, palimpsesto de histórias escritas à flor da pele, memórias transgeracionais em carne viva. És norte, oriente e centro. Estás fora e dentro. É porque fazes mais sentidos o quão profundo és sentido. Nordeste, feito de geografias poéticas, metamorfoses ambulantes, tropicálias, sementes frutíferas lançadas aos ventos de mudanças, andanças, protestos de joões, em tons de zés, gils, caetanos e novos baianos, migradas, semeadas e brotadas em solos de sampas, guanabaras, bras-ilhas... És poema-fruto em forma de gente, na selva de pedra onde cobra come cobra. Porém, mesmo ali... Carcará... “Num vai morrer de fome”, oxente!

 

Nordeste, meu chão e coração – de onde vim e o que sou. Ser nordestino é ter raiz forte do bioma catingueiro, vagar valente por intrincadas veredas, crescer pela terceira margem do rio da existência, florescer e frutificar em meio a vidas secas, com um dom extraordinário e criativo para sobre-vivências.

 

Vem-me a lembrança de uma criança de seis anos, saída das paragens do Rio Gavião, “dispois do derradêro cantão do sertão, lá na quadrada das águas perdida”, vindo desaguar no planalto central deste país de realidades tão contraditórias, mesmo opositoras, quais dálites e brâmanes intocáveis, a “partir pra cidade garantida, proibida, arranjar meio de vida”... Déja vu de margaridas em pétalas de ipês, em questões de galhos retorcidos que insistem em saciar sua sede de respostas, soluções, harmonia, paz... Criança crescida entre interrogações e pontos de vista de mundos tão próximos e tão distantes, acostumada às contemplações do típico pôr do sol do quadradinho cerradense, como que diante de um duelo de faroeste constante, entre a periferia da luta e a capital do fausto.

 

Nordestino, social, poética e quase que biologicamente falando, um camaleão, de tanta luta r-evolutiva, mestre da arte da adaptação. É arquétipo manifesto em sete cores de catavento, padrões de mosaicos em movimento, tradição preservada de formas variadas, caminho com encruzilhadas de Exu em mil direções, por onde passam e repassam mensagens de Hermes, em reverberações de sensos e modos de escrever, ler, ver, interpretar, ouvir, traduzir, transformar, reformar. É ter que dar seu jeito, muitas vezes mil jeitos, de camuflar, resistir, re-viver, enganar o existir para ser. É conjugar na vida o verbo nordestinar.

 

Nordestino é saber de onde se vem, nem sempre para onde se vai – mas vai, assim mesmo –, pronto a encarar, resiliente e corajoso, até onde indicar o novelo de sua sina. É entender-se nor-destino. Abraçar quem e o que se é, num exercício existencial, antropofágico, de consciência de, e com, classe – retinindo o galope do martelo do preconceito nas cordas de prata da viola, rimando suas dores com revoltas métricas de cordéis e cantorias, entoando as pancadas da vida na pele de bode mágica do pandeiro, fazendo-se em mil pedaços de uma devotada oferenda à Vida, realizando seu sacrifício cotidiano em forma de versos claros e improvisos certeiros, com sentimentos de dor misturados aos de honra e glória pela luta, entre derrotas e vitórias. É, num único ser quimérico, concretizar-se rei de si mesmo, guerreiro em defesa dos fracos, mago revolucionário da história, amante do bem de toda a humanidade. É ser deus e o diabo na terra do sol, um santo guerreiro contra o dragão da maldade.

 

Ser nordestino é cumprir um destino, sem desatino. É o cabra saber mirar fundo nos olhos do viver e subir nos cascos, ficar de pé, quase arregalando os olhos de altivez e comprimindo os lábios de coragem, não arredar para se fazer respeitar, usando boas e poucas palavras, se for o caso, cerrar os punhos, puxar duma peixeira, vociferar, morder, meter cornos e coices nas adversidades, e ganhar, na lei ou na marra, o que é seu. É que cabra não é da mesma espécie que ovelha... É de outra natureza: cabra dá o sangue para não dar a pele, o que explica seu pensamento, seu sentimento, seu comportamento – de uma só palavra, um só coração, uma só atitude – tudo o que uma vez dito, sentido e feito, não tem volta. É cumprir-se, com riso coringa de canto de boca, enquanto crava sua seta objetivada em alvo certo, pena de poeta, espada de guerreiro, na meta da vida. Em ponto.

 

Pronto! Nordestino é isso. E mais isto...

 

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