Paulo José Cunha é professor da UnB, escritor e jornalista.

Paulo José Cunha

 

Poucas horas depois do atentado contra Donald Trump durante um comício na Pensilvânia já era possível adquirir pela internet camisetas em pelo menos duas cores – preta ou branca – com a foto que se tornou um ícone do episódio e que já faz parte da galeria de imagens que ajudam a contar a história dos Estados Unidos. Claro que a primeira explicação para a instantaneidade da utilização da foto num objeto de consumo é a de que a extrema direita acoitada no Partido Republicano encontrou um excelente símbolo de campanha e passou imediatamente a se utilizar dele para a promoção de seu candidato.


Mas, sem qualquer juízo de valor ou ideia pré-concebida, o que mais chama a atenção na foto de autoria de Evan Vucci, da Associated Press, é o conjunto de características que se enquadram à perfeição no que os especialistas em fotografia consideram essenciais para o sucesso de uma foto. Segundo informações divulgadas logo após o atentado, no instante do tiro, Vucci estava correndo sob o palco e disparou várias vezes o obturador. Ao observar o material captado, escolheu a que lhe pareceu perfeita, enviou à redação e a AP iniciou imediatamente sua divulgação para o mundo inteiro.   


Impossível saber se Vucci editou a foto antes de divulgá-la. Provavelmente não, dadas as características exigidas para um bom enquadramento, que ele respeitou rigorosamente. Uma delas, talvez a principal, é o respeito à regra dos 2/3. Que significa, grosseiramente falando, que para evitar a monotonia da foto, o fotógrafo “divide” a cena em duas partes na horizontal e em três partes na vertical. Ou o contrário. O crítico de arte Philip Kennicott publicou domingo passado, 14/07, no Washington Post, um artigo intitulado Uma fotografia poderosa que pode mudar os EUA para sempre analisando a foto de Vucci. Diz ele: “A foto respeita as regras dos terços, que os fotógrafos usam para compor uma fotografia, com o rosto de Trump ao centro. Sua mão levantada e a escolta formam uma pirâmide, que o eleva ao céu. Os agentes olham cada um para um lado. E a gigante bandeira americana flamula contrabalanceando o peso do ombro do agente secreto”. E acrescenta que a imagem é “densamente embalada com marcadores de nacionalismo e autoridade — a bandeira, o sangue, os rostos urgentes de agentes federais em ternos escuros”.


Kennicott chama a atenção para alguns detalhes. Entre eles o braço direito de Trump levantado “para fazer um gesto de punho cerrado à multidão, enquanto a bandeira americana ondula acima de sua cabeça”. E até observa que a foto contém “um poderoso equilíbrio de cores – vermelho, branco e azul”. Só não reforçou que essas são justamente as cores da bandeira americana, ícone reconhecido mundialmente.


Mas há outros aspectos que merecem menção. Um deles é a composição perfeita dos componentes da cena. Trump está cercado por três agentes, todos de preto. Embora o rosto da agente esteja voltado para baixo, dá para perceber que se trata de uma mulher bonita. Em outras circunstâncias, talvez valesse a pena valorizar esse rosto bonito, mas na escolha da foto Vucci, com certeza de forma proposital, preferiu optar por um dos cliques em que ela olha pra baixo, e por isso não dispersa a atenção do espectador do objeto central da cena. Já os dois agentes, de óculos escuros, ajudam a compor uma espécie de “cordão de proteção” ao líder, cuja imagem se situa precisamente no centro. Como a sugerir que o povo norte-americano precisa “abrigar e proteger” esse homem. Trump tem o punho erguido, símbolo de poder e força, gesto popularizado – olha só! – pelos “Panteras Negras”, grupo de ativistas que surgiu na década de 1960 e lutava pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. O grupo – olha só de novo! – terminaria adotando uma plataforma abertamente marxista, mas o gesto do punho fechado tornou-se tão forte e expressivo que até ativistas de direita, como é o caso do próprio Trump, o adotaram para reforçar sua imagem de força e poder. Vale realçar também a posição do rosto de Trump. Ele não olha para o povo que o acompanha no comício, e, sim, para algum ponto acima da multidão. Esse olhar, nesse ângulo, é igualmente importante, porque simboliza o líder que vê adiante, que mira um ponto à frente, lá no “futuro”. Quem já atuou em campanhas políticas sabe que a câmera sempre é posicionada um pouco abaixo do rosto do candidato, exatamente para que ele esteja “acima”, transmitindo a sensação de vitória. A foto do atentado contém todos esses ingredientes. Sem falar, é claro, no sangue em seu rosto, que dramatiza ainda mais o momento e o converte em mártir.
      

Por último, vale observar dois detalhes essenciais. O primeiro é o céu impecavelmente azul ao fundo. Parece até que foi produzido com a única e exclusiva finalidade de valorizar os elementos centrais da cena. A luz, de que se nutre a fotografia (foto = luz + grafia = escrita) é absolutamente perfeita. Nem falta nem sobra. Banha a cena de forma absolutamente impecável, sem sombras que poderiam deturpar o objeto. Merece registro a bandeira americana estrategicamente desfraldada ao lado do candidato. Seu punho quase roça o bastão que a sustém, o que dá a impressão de que Trump é quem a está heroicamente erguendo e sustendo-a bem no alto. Sustentando seu país bem no alto? É, pode ser...   


Esta análise, insisto, não contém segundas intenções nem sugere que a cena tenha sido pré-montada, como vários memes da internet tentaram fazer. Seria ridículo se não fosse trágico, já que o próprio autor do atentado foi morto a tiros na ocasião. A intenção, aqui, é apenas observar como é possível a um bom fotógrafo captar o flagrante de um momento com invejável precisão, bem como salientar que, na escolha da foto que viralizou e já virou história, sem dúvida alguma, ele sabia que exatamente ali, e precisamente naquele momento, estava garantindo seu lugar na história do fotojornalismo mundial. Quanto às camisetas com a reprodução da foto, elas apenas repetem o que já foi feito com outros registros icônicos, cujo melhor exemplo é o do guerrilheiro cubano Che Guevara, no registro do fotógrafo Alberto Korda durante um comício em Havana, uma das imagens mais reproduzidas do mundo, capturada pela cultura pop dos anos 60 para se tornar símbolo de atrevimento e rebeldia. Che, com sua boina com a estrela e seu olhar enigmático, perdido em algum ponto do infinito à frente (O guerrilheiro heróico, como o próprio Korda batizou a foto), passou a ser símbolo de rebeldia e resistência pela juventude do mundo inteiro. Já a foto do atentado a Trump, dificilmente servirá a propósitos, digamos, tão nobres. A conferir.  

 

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