OPINIÃO

José Alberto Vivas Veloso é professor aposentado da Universidade de Brasília e criador do Observatório Sismológico (SIS/UnB). Mestre em Geofísica pela Universidade Nacional Autônoma do México. É autor do livro O terremoto que mexeu com o Brasil.

Alberto Veloso

 

Meados dos anos de 1960. A imagem que guardo dele é a de um jovem de 20 anos, de 1,70 m, ou pouco menos, compleição forte, mas sem qualquer traço de sobrepeso. Gostava de trajar camisa T-shirt branca e dificilmente era visto sem um ou dois livros debaixo do braço. Sempre os lia, mas era pouco provável ser um deles de geologia, o seu curso universitário. Seus cabelos levemente aloirados e cacheados eram partidos de lado e o seu rosto de pele clara era emoldurado por óculos de lentes poderosas, grossas como fundo de garrafa. Sem eles, não conseguia ler direito. Seus traços físicos não eram de uma pessoa bonita, mas tinha um sorriso franco e uma simpatia contagiante. Palavra fácil e convincente, logo fez amizade por toda a universidade.

 

Outras de suas facetas só eram conhecidas por colegas de curso. Se a missão era escalar um morro, ele queria ser o primeiro a chegar ao topo e, quase sempre, o conseguia. Gostava de desafiar seus colegas para uma queda de braço. Era brincalhão e também chegado a um malfeito durante as excursões. Lembro-me de alguns fatos, pois partilhei dos ocorridos. Certa vez, ao chegarmos a uma pequena cidade à noitinha, o único hotel já não possuía acomodações para todos. Alguns tiveram de dormir em redes estendidas na praça principal, bem arborizada, mas de chão coberto de capim. Sorrateiramente, ele era um dos que afrouxaram várias amarras das redes, que vieram ao chão, algum tempo depois de o ocupante mexer para cá e para lá, procurando a melhor posição de dormir.

 

Em outra ocasião, um colega dos mais altos da turma e pessoa muito séria estreava seu novo cantil em uma excursão pelo interior de Goiás. Quando se afasta muito do veículo de transporte, é bom carregar tal utensílio, mas quando se está por perto ele fica mesmo é dentro do ônibus. Em uma dessas oportunidades, lá estava o loirinho e demais cúmplices colocando um ovo cozido e descascado dentro do bonito cantil. Algum tempo depois, quando o ovo já havia balançado bastante, o dono do cantil resolveu sorver um gole de água.

 

Caramba! O homem ficou uma fera, nervoso demais. Sua fúria transformada em gritos e impropérios foi ouvida, imagino eu, além da fronteira do estado vizinho. Poucas semanas antes, em uma das aulas de paleontologia, havíamos aprendido que, no passado geológico, viveram insetos gigantescos, alguns da família de nossas atuais libélulas. Em nossa memória ainda soava fresco o nome do maior e do mais bravo inseto voador que já viveu na Terra, o predador meganeura. E, naquele momento, esse foi o apelido dado ao nosso colega do cantil novo, mas só empregado longe dele, pois foi dito que era alto e forte.

 

Ah! Mas como esquecer seu jeito namorador e de seus galanteios? Invariavelmente, era o primeiro a se aproximar das meninas moradoras das cidades que cruzávamos, ou em que pernoitávamos. Colhia flores no campo e as arrumava com carinho para ofertar a todas as mulheres. Podia ser a menina bonita da cidade, ou a senhora atrás do balcão de um bar esquecido de uma estrada de terra. Ele escrevia poesias e sempre tinha versos, seus ou de outros, na ponta da língua. Outras vezes empregava uma frase de efeito, ou uma citação impactante.

 

Possuía memória privilegiada, o que lhe ajudava em tudo. Havíamos formado um grupo de estudo e nos reuníamos na casa de um colega, cuja mãe sempre tinha algo saboroso e nutritivo a nos oferecer. O loirinho se comprometia a ir, mas nunca aparecia na hora combinada. Chegava muito atrasado e dizia-se cansado de reuniões anteriores. Saudava-nos com tapinhas nas costas, beliscava um quitute, fazia um par de perguntas sobre o que estudávamos e depois pedia para dormir sobre o tapete da sala de visitas do apartamento. Antes, porém, acertava de ser despertado bem cedinho para rever toda a matéria e tirar dúvidas. Mesmo com pouco tempo de estudo conseguia absorver os assuntos e obter boas notas.

 

O tempo passou e o seu convívio conosco foi diminuindo e também a sua assiduidade ao curso de geologia. Ele não participou do trabalho de campo obrigatório e não se formou conosco. Atrás daquele rapaz de bom coração se escondia um líder nato, ciente do que queria e para onde seguir. Podia seduzir plateias com seus discursos, mas nunca as conclamava para o uso de armas como meio de luta política. Preso, em 10 de outubro de 1973, carregou um mistério que já perdura por quatro décadas, pois não se sabe como, onde e de que forma desapareceu. Para uns poucos, ele era carinhosamente chamado de Gui; para a história, ficou conhecido como Honestino Monteiro Guimarães.

 

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