OPINIÃO

Luiz Paulo Ferreira Nóguerol é professor de História da América do Departamento de História da UnB. Doutor em Economia Aplicada.

Luiz Paulo Ferreira Nogueról*

 

A Unesco, órgão da ONU dedicado também à promoção da cultura, propôs o dia 23 de agosto como data para celebrar o fim do tráfico de pessoas escravizadas e a memória de suas vítimas. Esta é uma excelente iniciativa, uma vez que a escravidão marcou profundamente a formação e o presente das sociedades americanas e das africanas. Ao contrário do que se imagina normalmente, gostaria de lembrar que os efeitos do tráfico e da escravidão não se restringiram apenas aos africanos e aos americanos.

 

Colombo, em 1492, inaugurou o tráfico de indígenas escravizados para a Europa, o que teve curta duração, mas também precisa ser lembrado. Do mesmo modo, não se pode esquecer que as primeiras pessoas a serem escravizadas nas Américas foram os próprios indígenas, traficados para o Velho Mundo ou não. Colombo tornou-se um experiente navegador, antes de 1492, na rota entre Lisboa e as ilhas atlânticas portuguesas da Madeira e dos Açores. Entre as mercadorias que descarregava em Portugal estava o açúcar, então produzido por africanos escravizados em latifúndios, tal como seria produzido no Brasil, décadas depois.

 

A escravidão africana existia na Península Ibérica antes da invasão europeia às Américas. Já na década de 1440, no chamado périplo africano, os navegadores portugueses encontraram, no Golfo da Guiné, algumas sociedades africanas que vendiam pessoas e começaram a comprá-las para a produção de açúcar tanto nas ilhas mencionadas quanto no sul de Portugal e no que seria, posteriormente, o sul da Espanha. Séculos antes que se iniciasse o tráfico com o Golfo da Guiné, cristãos e muçulmanos escravizavam-se mutuamente na Bacia do Mediterrâneo, assim como no norte da Europa havia a escravização de finlandeses e eslavos em geral.

 

Tal como encontraram um mercado de escravos em funcionamento no Golfo da Guiné, na década de 1440, nas de 1490 a 1540 os portugueses conheceram vários outros mercados de gente no Índico e no Mar da China. Com a conquista de Manila e a descoberta da rota oceânica para ligá-la às Américas, na década de 1570, os espanhóis iniciaram o tráfico pelo Pacífico, por meio do galeão que ligava a atual capital filipina a Acapulco, no México. Nas Índias de Castela, denominação dada às colônias espanholas nas Américas e nas Filipinas, havia, entre outros asiáticos escravizados, japoneses, chineses, malaios, filipinos, timorenses e indianos.

 

Com o que se expôs nos parágrafos precedentes, pode-se ter a impressão de que a escravidão sempre existiu e que esteve presente no mundo todo. Isto é um erro porque, em História, achar alguma instituição que sempre tenha existido é muito difícil. De igual maneira, falar da Europa, da África e da Ásia a partir do século XV não é falar do mundo inteiro nem de todas as épocas. Nas Américas, antes de 1492, a escravidão era exceção, se é que existiu em algum lugar. Diz-se que a Malinche, personagem importante para a conquista do México, era uma mexicana escravizada entre os maias. De igual modo, argumenta-se que os piñasqakuna, prisioneiros de guerra no Tahuantinsuyu (Império Inca) e enviados para a Amazônia, eram escravizados, mas disso não há maiores evidências.

 

Como outras instituições, a escravidão e o tráfico surgiram em diferentes lugares e épocas, mas não em todos, e se tornaram ilegais do século XVIII ao XXI. No caso do Brasil, que recepcionou quase 45% de todos os africanos desembarcados nas Américas do final do século XV ao XIX, a escravidão africana e indígena e o tráfico transatlântico foram básicos para a nossa sociedade, contribuindo para a formação do Estado, para a riqueza privada, passada e presente, bem como para a nossa população, com suas abissais desigualdades, e para o nosso maior patrimônio, a cultura brasileira, mas ainda bem que acabaram.

 

Comemoremos e promovamos a reparação possível! 

 

* o autor publicou artigos em revistas nacionais e estrangeiras sobre a escravidão africana em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul e no Uruguai. Como coautor, publicou um capítulo de um livro sobre bem-estar social na América Latina e um segundo livro sobre escravidão no Brasil.



 

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