OPINIÃO

Hayeska Costa Barroso é professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UnB). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Maternidades, Parentalidade e Sociedade - GMATER.

Hayeska Costa Barroso

 

Quando nós, mulheres, escrevemos sobre os mais diversos tipos de violência que se expressam socialmente contra nós, por mais que o texto tenha pretensão acadêmico-científica, as palavras ecoam, na verdade, um grito por socorro, um chamado ao enfrentamento que, quando silenciado, custa nossas próprias vidas. A escrita, impregnada de nossas vivências cotidianas, quer oriundas do íntimo dos lares, quer dos inúmeros espaços públicos que insistimos em ocupar com muita (r)existência, ganha tons e contornos confessionais, dado que já não nos é possível (nem necessário, nem recomendável) estabelecer qualquer tipo de alteridade e/ou distanciamento quando o assunto é a luta no enfrentamento à violência contra as mulheres.

 

As tipologias e classificações que nomeiam as violências — física, psicológica, patrimonial, moral e sexual —, em que as mulheres são o alvo, constituem componentes fundamentais na estrutura de um sistema patriarcal, cuja marca central é a desigualdade de gênero. A hierarquização das relações entre homens e mulheres atua, portanto, como um mecanismo de dominação, opressão e controle sobre a totalidade da nossa vida. Para além de um conceito abstrato, é preciso entender que o patriarcado não só garantiu as condições para que essas violências ocorressem num passado distante, como também possibilita que, ainda atualmente, essas mesmas violências se reproduzam e se reinventem, organicamente imbricadas nas mais diversas transformações culturais, sociais, políticas e econômicas. 

 

Urge que avancemos qualitativa e criticamente nos debates, de modo a superar os discursos que insistem em apreender essas violências como ações isoladas, discursos de ‘livre’ opinião ou atos puramente individuais de ‘desvio’ de caráter por parte dos seus autores. O patriarcado, como sistema, adapta-se a cada uma das novas dinâmicas societárias com o objetivo de manter intactas as condições de subordinação das mulheres. A relativização da violência contra as mulheres nada mais é do que um dispositivo que impede que avancemos na direção de uma sociedade que nos respeite integralmente e nos possibilite viver livres de opressões. Nesse sentido, cada palavra escrita — seja em artigos acadêmicos, nas redes sociais, ou na literatura — é também expressão de resistência, formas diversas de se levantar contra a cultura patriarcal, de jogar luz sobre a necessária proteção dos nossos corpos e vidas, de romper com as cotidianas formas de violência que sofremos e que são relativizadas sob o manto do silêncio, da indiferença, das brincadeiras, dos ditados populares, das tradições e dos hábitos sociais tacitamente aceitos como inofensivos. A acuidade com que as agressões cotidianas nos alcançam parece tentar encobrir o fim trágico cujo resultado exponencial é o feminicídio, o assassinato sistemático de mulheres, cujas motivações de gênero são essenciais para entender as bases sobre as quais esse fenômeno repousa.

 

É fundamental que mantenhamos uma mobilização contínua, que as instituições se comprometam com campanhas e debates, mas também com ações concretas que operem transformações sociais mais profundas nas suas estruturas, a partir de seu empenho consciente e coordenado em prol da equidade de gênero e da consolidação de políticas públicas de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres. A luta por justiça não nos é facultativa, muito menos opcional. Trata-se de um imperativo inegociável, compulsório e necessariamente coletivo, de modo que datas como o Dia Nacional de Luta Contra a Violência Contra a Mulher, bem como outras alusivas a essa pauta, atuem como um lembrete, um chamamento a ações efetivas e concretas, à luta política, ao amplo debate nos mais diversos âmbitos e espaços da sociedade. Para nós, enfrentar a violência contra as mulheres é, literalmente, uma questão de vida ou de morte. É, portanto, na mesma esfera social que reproduz opressões, que devemos enfrentá-las e eliminá-las de forma coletiva, para que possamos usufruir de uma vida plena e livre de violências.

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