OPINIÃO

Camilo Negri é professor do Departamento de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa Ideologias Políticas Comparadas e é pesquisador fundador do Colégio Latino-Americano de Estudos Mundiais da Flacso-Brasil.

Camilo Negri

 

Apesar do otimismo das últimas décadas, a erradicação da pobreza enfrenta reveses capazes de limitar avanços e reorientar expectativas globais. Segundo as Nações Unidas, em 1984, cerca de 40% da população mundial vivia na pobreza extrema1 e lutava para sobreviver, sendo incapaz de satisfazer as necessidades básicas, sejam elas alimentares, educacionais ou na esfera da saúde. Em 1994, a população vivendo em pobreza extrema caiu para 35% e, nos 20 anos seguintes, a taxa de redução da pobreza extrema mais que dobra. Assim, em 2004, a extrema pobreza reduziu 13%, atingindo 22% da população mundial e, em 2014, chegou a 12% da população mundial.

 

Com o desempenho impressionante veio o otimismo da sociedade, dos governos e das instituições internacionais. Diante dos impactos da Crise de 2008 e do aumento da desigualdade, o Banco Mundial se comprometeu, em 2013, com a redução da extrema pobreza para menos de 3% até 2030. Ainda que a proposta representasse o retorno às taxas de redução abaixo das experienciadas naquela década, parecia atender as expectativas dos atores políticos envolvidos e, pretensamente, marcava um importante avanço global para a erradicação da pobreza.

 

Neste 17 de Outubro, Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, é importante voltar o olhar para a questão, refletir sobre os avanços recentes e ponderar sobre os limites enfrentados nos últimos anos. Recentemente, as Nações Unidas divulgaram que a última década apresentou estagnação no decréscimo da pobreza. Em 2023, mais de 11% da população mundial estava vivendo na pobreza extrema, o que contribuiu para a reversão das expectativas e compromissos internacionais. Além disso, segundo o mais recente relatório do Banco Mundial, a pandemia de covid-19 levou aproximadamente 70 milhões de pessoas à pobreza extrema, somente em 2020. Isso representa o maior aumento ocorrido em apenas um ano, desde o início do monitoramento em 1990. Desta forma, aproximadamente 719 milhões de pessoas subsistiram com menos de US$ 2,15 por dia no final de 2020.

 

Os impactos da pandemia foram sentidos no mundo inteiro, entretanto, os países mais pobres foram os mais afetados. Na África Subsaariana está concentrada 60% de todas as pessoas em situação de pobreza extrema e a taxa de pobreza na região é de aproximadamente 35%, a mais alta do mundo. Não apenas os países mais pobres, mas, evidentemente, as pessoas mais pobres foram as que mais sofreram com o incremento da pobreza devido a pandemia. Conforme o Banco Mundial, as perdas de renda atingiram 4% em média para os 40% mais pobres, o dobro das perdas dos 20% mais ricos.

 

No Brasil, por exemplo, uma parte da classe média foi empurrada para baixo, mas o incremento de políticas como o Bolsa Família, entre outras, contribuiu para evitar o aumento da extrema pobreza (de 9% em 2021 para 5,9% em 2022, segundo IBGE). É improvável, entretanto, que obtenhamos melhores resultados no futuro próximo, uma vez que a desigualdade socioeconômica continua aumentando. O rendimento médio mensal real domiciliar per capita do 1% mais rico foi de R$ 18.257 em 2022, para R$ 20.664 em 2023, um aumento de 13,2%. Os 40% mais pobres tiveram rendimento médio de R$ 527 em 2023, uma alta de 12,6% em relação a 2022, quando foi de R$ 468.

 

Desta forma, considerando os rearranjos econômicos decorrentes da pandemia, crises econômicas, aumento da desigualdade socioeconômica e guerras, o Banco Mundial revisou suas pretensões e, em 2023, divulgou que é improvável que o mundo consiga atingir a meta de erradicação da pobreza extrema até 2030. O diagnóstico da derrota iminente pode ser pior que a própria derrota em si pois pode ser interpretado como derrota inerente, desencorajando a promoção de novas soluções e a continuidade da luta.

 

Um grande detalhe, entretanto, não pode passar despercebido. Em 1984, cerca de 80% da população chinesa era considerada extremamente pobre. Em 1994, 57%; em 2004, 28%; em 2014, 2,9%; e, em 2022, 0,15%. Em quarenta anos, mais de um bilhão de pessoas deixaram a pobreza extrema somente na China. Dito de outra forma, a China foi a maior responsável pelas transformações mundiais mais recentes e nem a pandemia abalou sua capacidade de erradicar a extrema pobreza. Evidentemente, a abundância econômica e o sistema político são relevantes, mas foram as políticas implementadas lá que sustentaram o desempenho positivo.

 

A pobreza é um dos maiores afrontes aos valores constituintes das sociedades liberais modernas. Sua persistência não pode ser considerada natural, na mesma medida em que não se pode considerar normal que seres humanos se alimentem do lixo de outros seres humanos, como ocorre em muitas das grandes cidades. Desta forma, apesar da persistência da pobreza e dos recentes reveses no seu combate, existem exemplos como o da China, que mostram que o objetivo não é necessariamente impossível. Para tanto, as alternativas existentes são conhecidas: valorizar as ferramentas e mecanismos de redistribuição existentes e, principalmente, investir em políticas públicas de trabalho, emprego e renda, que tornam os avanços mais duradouros e significativos.

 

Referências

1. Ainda que o conceito de pobreza (ou pobreza extrema) envolva aspectos multidimensionais e que as condições de vida em situação de pobreza dependam de variáveis socioculturais, políticas e geográficas, é recorrente nas pesquisas internacionais utilizar o indicador de renda como principal medida. Assim, nas pesquisas sobre pobreza global, a extrema pobreza é definida como a condição daqueles que dispõem de menos de 2 dólares e quinze centavos por dia.

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