Kleber Aparecido da Silva
Desde a segunda, 23 de setembro de 2024, um meme viralizou no Brasil e no exterior: “Que Xou da Xuxa é esse?”. Onde você estivesse, seja na universidade, na escola, no shopping center, até no Rock in Rio, ouviu-se o tempo todo esta narrativa experienciada por uma criança, na década de 80, que não conseguira entrar no Xou da Xuxa: “Eu cheguei aqui às 3h da madrugada, isso não pode acontecer! Deixaram o moço entrar e as crianças ficaram. Que 'Xou da Xuxa' é esse? Que 'Xou da Xuxa' é esse?”.
A partir de uma releitura deste meme, alicerçada em uma reflexão científica, me pergunto: Que “Sul Global” é esse a que nós acadêmicos nos referimos? Percebo, sinto e vivencio, desde o momento em que ingressei na Universidade de Brasília (UnB), em 2009, um movimento que tem sido caracterizado na literatura acadêmico-científica como “Sul Global” (Global South), que se alinhava a uma perspectiva decolonial de (re)construção e disseminação dos conhecimentos e dos saberes. O linguista aplicado (crítico) indiano-brasileiro Kanavillil Rajagopalan, da Unicamp, nos sinaliza e nos alerta de que o colonialismo foi muito mais do que um capítulo macabro na história da humanidade, ao longo do qual um grupo de nações europeias se auto outorgaram o direito de se lançar numa aventura predatória rumo a distantes povos da África, Ásia e América Latina, submetendo-os a inomináveis iniquidades e humilhações, sugando impiedosamente suas riquezas e deixando-os na penúria e total desamparo. O colonialismo tomou conta da mente dos povos (e adiciono também da mente de muitos linguistas e educadores/as) dentro do regime de escravatura, ainda que muitas vezes disfarçado com outros nomes e eufemismos engenhosos, ao qual os conquistadores os submeteram na sua incansável procura por bens alheios, movida pela ganância e pelo delírio desmedido de sua suposta superioridade moral e intelectual. E a sequela mais gritante e danosa dessa lavagem cerebral à qual os povos dominados foram submetidos leva o nome de colonialidade.
Contudo, Tânia Rezende, pesquisadora cerradeira de Sociolinguística, com ênfase em Cosmolinguística, afirma que a “(...) manutenção da geopolítica do conhecimento, com as atualizações contemporâneas, no tensionamento polarizado de resistência, entre a colonialidade e a decolonialidade do poder, emerge desta enunciação metafórica Norte Global e Sul Global”. Essa enunciação metafórica, segundo Tânia Rezende, continua sustentando a mentalidade moderna colonial, (i) ao bipartir o mundo em Norte e Sul, (ii) ao localizar no Sul Global, principalmente, os povos saqueados, pilhados, subalternizados e empobrecidos pelo Norte Global, e (iii) ao criar outras invisibilidades, outras raças, espécies, outros tipos e por definir e determinar filiações, que são os fundamentos do neoliberalismo (Mbembe, 2018).
Sendo assim, a meu ver, a política de Estado para a educação escolar é neoliberal, do mesmo modo, ancorada na razão moderna, sustentada nas ideologias cristãs, coloniais escravagistas: é salvacionista, adaptativa e meritocrática; é tolerante, exige capacidade de superação e resiliência, sempre do/a diferente, sempre o/a outro/a. Sem condições adequadas de trabalho, os/as trabalhadores/as da educação se viram com gambiarras, como o suborno pedagógico. Entretanto, uma pedagogia freireana alicerçada na “pedagogia da autonomia”, “pedagogia do esperançar”, e com uma compreensão horizontalizada e verticalizada das pedagogias das opressões e das violências, sejam elas físicas, mentais e/ou simbólicas, em diálogo na “educação inter/transcultural e no bilinguismo epistêmico, nos aponta possibilidades de acolher outras realidades educativas para abertura a outros mundos, outras cosmopercepções, com a generosidade do compartilhar saberes, sentimentos e espiritualidades em línguas diversas, em coaprendizagens, rumo à intercompreensão”.
O que eu defendo neste artigo, corroborando com Tânia Rezende, “é que nós não estamos no centro do mundo que a colonialidade maniqueísta inventou, tampouco estamos nas suas periferias ou margens”. Conforme Tânia Rezende, em uma mesa-redonda que estivemos juntos na Unijui, “(...) não nos situamos também no Sul Global que a decolonialidade, ainda maniqueísta, contrainventou, porque nos situaram nas margens ou nas periferias desse polo, mas nós não aceitamos esse lugar. Quem enuncia cria o lugar e posiciona os corpos nos lugares. Nós não enunciamos os lugares, mas não aceitamos que nossos corpos sejam posicionados pelos/as enunciadores/as dos lugares. As referências, de onde nós estamos tirando essas ideias e as posturas que as sustentam, vêm das vozes (...) de nossa ancestralidade cerradeira, que merecem respeito”.
Em síntese, além de buscarmos definir, epistemológica e ontologicamente, o que é “Sul Global”, precisamos compreender que é: i) não é apenas uma definição geográfica, mas geopolítica, cultural e epistêmica; ii) um lugar discursivo, um lugar de produção de conhecimentos, plural e dialógico; iii) não é só o “Brasil”, nem o “Brazil”, mas sim os “Brasis” – comunidades que foram colocadas e se mantém à margem pela ausência de políticas públicas e políticas educacionais, a partir de diálogos e de pesquisas propositivas, plurais e críticas, visando escutar atentamente estas comunidades, mentes e corpos que foram subalternizados e/ou periferizados, como, por exemplo, surdos/as, indígenas, imigrantes em crise e/ou negros/as. Que esta nova forma de (re)pensar e de (re)agir na Ciência da Língua(gem) e também nas (Inter)Relações Internacionais seja a mola propulsora e/ou basilar pelos nossos pares na e fora da Universidade de Brasília, pois precisamos fazer mais pesquisas “com” o Sul Global e “não mais sobre” o Sul Global. E para tal intento, precisamos de (re)pensar global e agir glocal.
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