OPINIÃO

Frederico de Holanda é professor emérito e professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. É pesquisador e colaborador sênior do CNPq. Livros publicados: O Espaço de Exceção (2002, 2018), Brasília – cidade moderna, cidade eterna (2010), Oscar Niemeyer: de vidro e concreto (2011), 10 mandamentos da arquitetura (2013, 2015), Construtores de mim (2019). Investiga relações entre configuração edilícia e urbana, uso dos espaços abertos públicos, e segregação socioespacial.

Frederico Rosa Borges de Holanda

 

“Mas isso é uma cidade?” 

 

Quantos fizeram essa pergunta ao chegarem em Brasília por primeiro? As razões da estranheza podem ser especuladas com o auxílio das ideias desenvolvidas no campo de conhecimento do Urbanismo, de natureza multidisciplinar, envolvendo Geografia, Sociologia, Economia, Direito... Arquitetura. Por força da formação, focarei nesta última, ao celebrarmos hoje, 8 de novembro, o Dia Mundial do Urbanismo.

 

Urbanismo refere-se à ocupação do território pelas sociedades humanas, mas não qualquer tipo de ocupação: ele estuda o que denominamos tradicionalmente “cidade” – o maior, mais importante, mais longevo dos artefatos. Como todo artefato, ele tem uma dupla natureza: uma configuração (sua materialidade física – sua sintaxe), à qual é superposta uma significação, convencional, circunstancial e histórica, indicadora de pertença a certo universo cultural (sua semântica). Sintaticamente, a cidade é um artefato grande, denso, contínuo, construído sobre o chão; semanticamente, ela é qualificada por gentes e práticas as mais diversas, nos campos da economia, da política, da cultura – tudo junto e misturado. Essa é a quintessência do fenômeno: vale hoje, para metrópoles que ultrapassam duas dezenas de milhões de almas; valia 9.000 anos atrás, nos primeiros exemplos que a arqueologia revela, como Hacilar (na atual Turquia): mesmo em miniatura, a qualidade urbana estava lá, o convívio com a alteridade a se mostrar seu traço distintivo.

 

O que temos em Brasília?

 

A Capital nega as qualidades urbanas precípuas de grande tamanho, densidade e continuidade. Sim, ela é grande, tem hoje cerca de 2,8 milhões de habitantes, demograficamente a terceira cidade brasileira. Mas... não se gosta grande, mascara seu tamanho pela segmentação do todo em um conjunto de partes separadas por terreno desocupado, fazendo-a a segunda cidade mais dispersa do mundo (só perde para Mumbai, na Índia). De um avião, até que percebemos seu gigantismo, mas do chão – o que interessa – percorremos pequena cidade após pequena cidade, do “avião” de Lucio Costa – o Plano Piloto – à periferia distante.

 

Na sintaxe da microescala do espaço percorrido, nova estranheza: lugares de passagem – as vias, expressas ou não – recusam o diálogo com lugares de permanência: não há portas de prédios para esses corredores urbanos, ao contrário, os edifícios não lhes dão os “rostos”, mas os “ombros” ou as “costas”. Fachadas cegas inibem a relação entre dentro e fora até no lugar simbólico por excelência da Esplanada dos Ministérios.

 

A esta antiurbanidade junta-se outra: edifícios não se colam uns aos outros formando o espaço claro de ruas e praças, mas são soltos, quase escondem-se em meio à fartura de uma arborização de grande porte: na contracorrente na história urbana, esta cidade parque (Lucio Costa) não é mineral, ela é vegetal. Emblemático exemplo é o espaço do Eixo Rodoviário: essa via expressa entre fileiras de superquadras residenciais tem 210 metros de largura entre as fachadas dos prédios lindeiros; dessa largura, 70 metros (33%) são ocupados por faixas de rolamento veicular, e os outros 140 metros (66%) por fitas arborizadas que se estendem pelos 13,8 quilômetros de comprimento desse – de fato – gigantesco parque linear.

 

E sobre a semântica? A localização numa mesma área urbana – um “setor”, um bairro – de habitação, comércio, serviços, cultura, lazer, trabalho etc. resulta num espaço público com gente dia e noite: distintas práticas botam muita e diversa gente na rua em diferentes horários – gente o tempo todo. Não em Brasília. Por exemplo, o lugar exclusivo para o funcionalismo público no Eixo Monumental implica sua desertificação, não só entre as horas de chegada e saída (ou do almoço), como à noite e nos fins de semana. A sensação de uma realidade distópica pós-apocalíptica é inescapável.

 

 

Mas reconheçamos: isso tudo pode desagradar ao “urbanita” – aquele fã incorrigível das cidades animadas, do bulício das ruas, de sua improvisação e imprevisibilidade. Mas não desagrada ao “formalita”, que vê nisso caos, desordem, bagunça, e que prefere encontrar amigos nos lugares formalmente controlados, com regras estritas de comportamento, como os shoppings ou os clubes de elite; no limite, que se elimine totalmente os estranhos, como conviver na própria casa ou na casa de amigos. Mas nada é ruim que não possa piorar: cresce a medida em que nem isso mesmo passa a ser buscado, quando o espaço real, qualquer que seja, é substituído pelo espaço virtual das redes sociais.

 

Não, nem por isso Brasília é um inferno, seria injusto afirmá-lo, com o Mestre Lucio e com a própria cidade – quem mora nas superquadras sabe do deleite que é habitar esses lugares. Sem favor, a Capital é a mais importante obra urbana da modernidade. Mais ainda, ela bebe na história como nenhuma outra realização similar o faz – que o diga o parentesco com Champs Élysèes (Paris), o Mall de Washington (EUA), a pré-Colombo Teotihuacán (atual México). Seu urbanismo é, assim, contraditório, como ademais o é a sociedade que o abriga; o seu lado mais brilhante é sua forte identidade, e a correlata capacidade de imprimir-se indelevelmente em nossa memória.

 

 

 

 

 

 

 

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