OPINIÃO

Kleber Aparecido da Silva é professor do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas e do Programa de Pós-Graduação em Linguística e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Estudos Críticos e Avançados em Linguagens (GECAL) e o Laboratório de Estudos Afrocentrados em Relações Internacionais da UnB (LACRI). É bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq – 2A.  kleberunicamp@yahoo.com.br | kleberaparecidodasilva@gmail.com

Kleber Aparecido da Silva

 

Em 19 de dezembro de 2022, o primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, apresentou um pedido de desculpas em nome do governo holandês por seu papel no processo de escravização conduzido em suas ex-colônias. Além do pedido formal de desculpas, foi anunciada a criação de um fundo monetário de fomento às iniciativas sociais antidiscriminatórias no Reino dos Países Baixos e suas ex-colônias. Em seu discurso, o primeiro-ministro reconheceu a culpa daquela nação quanto aos prejuízos causados pela escravização e pelo tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. Por meio deste documento, o governo holandês oficialmente reconhece a culpa direta e indireta daquele país, culpa em sentido amplo, num processo em que conforme as palavras do próprio primeiro-ministro significou “(...) um crime contra a humanidade,” legal e moralmente conforme as normas e valores atuais. Esse processo somente findou em 1º de julho de 1863, com a abolição gradual da escravização na Holanda e em suas ex-colônias.

Não obstante, o governo holandês reconheceu oficialmente, na data de 19 de dezembro de 2022, que todo esse processo continua gerando sérias consequências para as pessoas descendentes dos povos escravizados no passado. Segundo o primeiro-ministro, isso implica a necessidade de uma “reparação integral e sistemática” de tais danos. Esse processo de reparação se dará de várias formas, dentre as quais, destaca-se: i) Promoção de Conhecimento e Consciência quanto ao tráfico transatlântico de pessoas escravizadas e da tomada de consciência por parte do povo holandês e de suas ex-colônias quanto aos prejuízos atuais oriundos desse processo; ii) Promoção de campanhas de combate ao racismo e à discriminação por meio do Programa Nacional Antidiscriminatório; iii) Promoção da memória de homens e mulheres que lutaram contra a escravização que os oprimia. Me pergunto: será que algum dia teremos um ministro ou um chefe de Estado que tenha coragem de fazer isto no Brasil?

Para muitos esta (re)ação seria um sonho e que dificilmente faria parte da nossa realidade. Contudo, hoje é uma realidade na República Federativa do Brasil. No dia 21 de novembro de 2024, o Governo Federal, em nome do Estado brasileiro, no auditório que estava completamente lotado na Escola da Advocacia Geral da União, o ministro Jorge Messias pediu publicamente desculpas à população negra pela escravização das pessoas negras e seus efeitos. Durante este momento histórico do pedido de desculpas, a ministra Macaé Evaristo rememorou a luta da população negra por liberdade, igualdade e conquista de direitos. “(...) Nessa caminhada de luta, que é abolicionista, que a gente lutou e continua lutando por liberdade, a gente vem construindo a cada dia passos muito importantes. Essa memória de mais de 300 anos de escravatura não acaba no 13 de maio, porque o 14 de maio começa com o total abandono da população negra no país”, lembrou.

“(...) Toda essa construção foi sendo trabalhada com muita luta e com muita força pelos movimentos negros ao longo do século XX e no início do século XXI, assim como o dia de hoje também é resultado dessa luta e de ações efetivas de muitos atores do movimento negro que fazem com que o Estado brasileiro vá mudando e se reconstruindo porque, infelizmente, ainda hoje, a gente tem um Estado impregnado pelo patrimonialismo, pelo racismo e pelo colonialismo”, finalizou a ministra.

A ministra Anielle Franco, da Igualdade Racial, fez referência à memória de sua irmã, a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. “Para além do pedido de desculpas, no ano de 2024, nós tivemos a condenação dos assassinos de minha irmã. Não é normal a cada dia e em cada instante a gente ter que lidar com essas mazelas e essas dores. São desafios enormes e, por isso, é importante a gente pensar esse trabalho coletivo, um trabalho coletivo concreto”, disse.

Já o advogado-geral da União, Jorge Messias proferiu a leitura do pedido de desculpas oficial em nome do Estado brasileiro à população negra. “A União manifesta publicamente o pedido de desculpas pela escravização das pessoas negras, bem como de seus efeitos. Reconhece que é necessário envidar esforços para combater a discriminação racial e promover a emancipação das pessoas negras brasileiras. Por fim, compromete-se a potencializar o foco de criação de políticas públicas com essa finalidade”, leu Messias.

O evento marcou também o lançamento da Plataforma JurisRacial, um repositório jurídico digital destinado a compilar e a disponibilizar documentos jurídicos sobre a temática racial. A plataforma, já está disponível e tem como objetivo dar visibilidade e trazer informações para apoiar a superação do racismo e suas múltiplas formas e manifestações.



“Desafiar estruturas de poder a partir do seu interior, trabalhando as rachaduras do sistema requer, no entanto, aprender a falar várias línguas de poder de forma convincente.”

Patrícia Hill Collins

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