Carla Pintas Marques, Silvia Badim Marques e Wildo Navegantes
A recente decisão do governo Trump de retirar os Estados Unidos (EUA) da Organização Mundial da Saúde (OMS) representa um marco polêmico e potencialmente devastador para a saúde global. Como o maior financiador da entidade, a saída dos EUA não apenas corta um dos principais fluxos financeiros da organização, mas também compromete a cooperação científica internacional, a resposta às pandemias e os avanços em áreas como vacinação, saúde materna e erradicação de doenças, além de enfraquecer o diálogo em prol dos pactos multilaterais na área da saúde, tão necessários para garantir uma saúde global conectada com os atuais desafios mundiais.
A OMS desempenha um papel essencial como coordenadora global de respostas a surtos e pandemias, além de promover padrões técnicos e garantir o compartilhamento de informações cruciais para a saúde mundial. Os EUA, ao longo de mais de 75 anos de participação, foram um dos principais aliados na construção e sustentação da organização. Ao se retirar, o país deixa um vazio significativo em termos de financiamento e liderança.
De acordo com dados recentes, os EUA representavam cerca de 14,5% do orçamento total da OMS. Esse financiamento era usado para programas cruciais, como a erradicação da poliomielite, a resposta a emergências de saúde e o fortalecimento dos sistemas de saúde em países de baixa e média renda. Sem esses recursos, a organização enfrenta desafios imensos para manter tais iniciativas, principalmente em um momento em que o mundo ainda luta contra as consequências da pandemia de covid-19 e outras crises emergentes, como as climáticas, que têm, inevitavelmente, um reflexo na saúde humana.
Não podemos falar em enfrentamento às mudanças climáticas sem falar em saúde coletiva e, a nível mundial, não podemos coordenar ações entre os países sem uma entidade forte como a OMS para subsidiar estratégias conjuntas entre os países. A perda de financiamento também compromete negociações e projetos futuros, como possíveis ajustes ao novo Regulamento Sanitário Internacional, vigente desde 2007, e o acordo pandêmico previsto para 2025. Esse acordo, concebido para aumentar a colaboração internacional na preparação e resposta a pandemias, perde força sem o envolvimento dos EUA, que trazem expertise técnica e capacidade de resposta rápida. Como bem apontado por especialistas, "as doenças não respeitam fronteiras".
A retirada dos EUA também ameaça redes cruciais de colaboração científica. Universidades, laboratórios e instituições americanas têm parcerias históricas com a OMS por meio de centros colaboradores que promovem pesquisa, desenvolvimento de vacinas e monitoramento de doenças. Ao romper esses laços, há o risco de isolamento científico, prejudicando avanços globais e atrasando soluções para ameaças à saúde.
Além disso, o fim do envolvimento financeiro voluntário por parte dos EUA pode causar danos imediatos. O financiamento ao intercâmbio e cooperação técnica, programas de imunização, como a vacinação contra o sarampo e a poliomielite, e a distribuição de medicamentos essenciais em regiões vulneráveis podem sofrer cortes severos. Essas lacunas aumentam a vulnerabilidade global diante de surtos e crises sanitárias, exacerbando as desigualdades também em saúde.
Além disso, a menor participação dos EUA para a melhor coordenação global pode ter impactos diretos na segurança de fronteiras, nas necessidades mútuas do cuidado à saúde das populações, na troca de informações sobre doenças emergentes e reemergentes, na governança global para o uso inteligente de antibióticos, no desenvolvimento de novos fármacos e imunobiológicos, na capacidade de detecção oportuna e coordenação da resposta a pandemias e a desastres naturais. Um exemplo é a necessidade de monitorar e controlar o vírus H5N1, que recentemente apresentou casos humanos nos EUA e apresenta franca expansão em animais silvestres.
A saída dos EUA da OMS exige uma resposta rápida e coordenada da comunidade internacional. Países como Brasil, Canadá, China, Índia, Japão, países da Europa ocidental, estados-membros do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico, entre outros, serão pressionados a aumentar suas contribuições financeiras para suprir parte do deficit. Filantropos e organizações privadas podem até desempenhar um papel maior, mas não serão capazes de substituir integralmente o apoio financeiro dos EUA. Por fim, é imperativo que governos, pesquisadores e organizações civis reforcem a narrativa de que a OMS é um pilar imprescindível para a saúde global, construída por princípios democráticos multilaterais levados a cabo pelos próprios países signatários.
Em um mundo cada vez mais interconectado, com cidades com alta densidade populacional e altamente urbanizadas, que sofrem por fortes efeitos extremos das mudanças climáticas, em países com altos índices de Gini e baixo IDH, com as pandemias acontecendo em espaço de tempo cada vez menores, o fortalecimento da cooperação internacional em saúde precisa ser prioridade. A decisão dos EUA de se retirar da OMS não apenas fragiliza a saúde global, mas também pode prejudicar sua própria população. Nesse cenário, em caso de não mudança da decisão do novo governo americano, cabe aos demais atores globais assumir a liderança e garantir que o direito à saúde seja preservado para todos.
Publicado originalmente, em 26 de janeiro, no portal Correio Braziliense.
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