OPINIÃO

Kleber Aparecido da Silva é professor do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas e do Programa de Pós-Graduação em Linguística e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Estudos Críticos e Avançados em Linguagens (GECAL) e o Laboratório de Estudos Afrocentrados em Relações Internacionais da UnB (LACRI). É bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq – 2A.  kleberunicamp@yahoo.com.br | kleberaparecidodasilva@gmail.com

Kleber Aparecido da Silva

 

No mês de dezembro de 2024, o pensador e ativista Ailton Krenak ministrou uma das conferências de inauguração da cátedra Darcy Ribeiro no Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E ao (re)ler um artigo publicado pelo colega Ewerton Martins Ribeiro e Teresa Sanches, que foi publicado na UFMG, no dia 02 de dezembro de 2024, no qual resgata a conferência proferida pelo catedrático Krenak, pretendo neste ensaio problematizar algumas questões a partir do prisma da Educação.

 

“Darcy Ribeiro conviveu com uma geração que se sentia intimidada, pela arrogância do pensamento colonial, a evitar ter ideias próprias. Os pensadores da América Latina [a meu ver da Améfrica Ladina citando Lélia Gonzalez] evitavam ter ideias próprias porque tê-las impedia que eles dialogassem com o que era a produção moderna ou contemporânea de um mundo [colonial] definido por publicações em inglês, francês ou alemão – bibliografias grandiosas, mas que não incluíam os latino-americanos. O Darcy, contudo, não tinha medo de pensar. Obviamente, quem não tem medo de pensar pode incorrer em algum erro, em algum equívoco. Mas isso não importa. O que importa é ter coragem de pensar. E Darcy tinha. Ele tinha aquela maneira tão gentil dele de se comunicar com todos nós, e isso possibilitava uma abertura ampla de entendimento do que ele estava propondo e das possibilidades de diálogo. Com os povos indígenas, durante a vida toda, eu acho que o Darcy se sentiu em casa.”

 

“Até o século 19, começo do século 20, a única narrativa que todo mundo podia acessar era a de que nós [os indígenas latino-americanos] éramos um povo beneficiário da presença colonial entre nós, que teria vindo nos ‘modernizar’, nos ‘civilizar’. Quando Darcy optou por uma ideia de povos-testemunhos, ele estava confrontando a narrativa instituída. Estamos olhando agora uma história muito antiga, de quando a Europa tinha a arrogância de contar a história do mundo na perspectiva de que tudo aconteceu a partir dela. Daryc Ribeiro [em contraponto a essa tradição] nos deixou uma obra monumental nos campos da literatura, da antropologia, das artes, da política. Ele não foi uma pessoa com um ‘único sinal’. Ele deixou muitas pistas para que a gente pudesse falar dele, tocar sua presença como cidadão, como sujeito que imaginou o Brasil. O nosso querido Darcy Ribeiro foi uma pessoa tão maravilhosa, tão plural, que nos ofereceu várias entradas para nos referirmos a ele.”

 

Para uma plateia preponderantemente jovem, formada, sobretudo por estudantes de graduação e pós-graduação, Krenak tratou da relação do antropólogo e político de Montes Claros com os povos indígenas brasileiros em uma fala que misturou a sua tradicional reflexão livre, de origem oral, com leituras de parágrafos de um texto em que ele está trabalhando. Como se sabe, Darcy Ribeiro (1922-1997) dedicou boa parte de seus esforços para o estudo – e, de certa forma, para a defesa da ontologia – dos povos indígenas brasileiros. Além das várias obras ensaísticas publicadas, entre suas realizações nesse campo está a redação, como funcionário do Serviço de Proteção aos Povos Indígenas (entidade precursora da Funai), do projeto do Parque Indígena do Xingu, criado em 1961.

 

A partir do trinômio “Soberania, Educação e Política”, Ailton Krenak não se furtou de lançar ideias provocadoras. Ao mesmo tempo, o pensador se permitiu não as esquadrinhar totalmente, de modo a, ao contrário, convocar o público a participar ativamente do exercício intelectual de se (re)pensar criticamente as questões, em vez de recebê-las mastigadas. “Vejo que há uma expressiva juventude aqui premiando-me com a sua presença. Podem ter certeza: o medo de pensar é o que impede os avanços que a gente poderia conseguir a cada geração, e que não conseguimos porque a gente fica intimidado com o que alguém fez antes de nós com a aparência de grandioso”, introduziu, remontando todo o aparato de saber já estabelecido no mundo desde a Europa, contexto que remonta à Grécia antiga.

 

Após discorrer sobre a singularidade arquitetônico-social da construção de Brasília, do sonho democrático do período que antecedeu o golpe de 1964, da atuação de Darcy Ribeiro e de outros intelectuais brasileiros no fomento desse sonho e no risco recentemente vivido pela democracia brasileira de sofrer um novo golpe, Ailton afirmou: “Eles [Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, entre outros que ele havia mencionado em outros momentos da conferência] queriam a democracia. Eles acreditavam na possibilidade de que viéssemos a ser uma democracia. Mas veja, eles eram sofisticados. Eles queriam uma democracia com palácios [remetendo-se a Brasília]; eles pensavam diferente daquele discurso trabalhista que acha que pobre pode morar em qualquer lugar; aquele discurso que é muito parecido com o pensamento fascista, que sugere que pobre ‘mergulha no esgoto e sai vivo’. Então a gente não pode ficar de bobeira e ouvir uma frase fascista e uma frase trabalhista sem entender a cumplicidade ideológica que elas implicam”, provocou.

 

A conferência de Krenak, que a meu ver, deveria ouvida e/ou lida em nossos cursos de pós-graduação, em especial nos cursos de Letras/Educação e Relações Internacionais, foi atravessada pela convocação ao pensamento livre, não esquematizado nem submetido a estruturas prévias ou excessivamente formalizadas de concepção, que ele demarca como coloniais, próprias de um mundo pouco interessado em efetivamente combater as “crises sistêmicas”. Na esteira desse pensamento, Ailton criticou o excesso de referências ao conhecimento produzido no âmbito dos países desenvolvidos, como se dependêssemos dele para validar o conhecimento produzido por nós, e a mobilização em certa medida acrítica que vem sendo feita da ideia de “pensamento decolonial”. “Sou convidado por muitos de vocês a ler suas teses e dissertações, e então vejo vocês fazendo lá uma ‘crítica decolonial’. Eu fico me perguntando: a gente está na Europa?”, brincou.

 

A brincadeira, como de praxe, era séria. “Ora, a gente não tem de fazer uma crítica ‘decolonial’, a gente tem de fazer uma crítica contracolonial. A gente tem é de denunciar e detonar o pensamento colonial como uma coisa que se perpetua inclusive a partir da nossa própria maneira de produzir conhecimento. Muitas vezes, pensamos que estamos produzindo novas epistemologias, mas elas estão eivadas de pensamento colonial, cheias de vícios. Então a gente tem de pensar bem e avaliar se quando estamos reproduzindo Deleuze ou não sei mais quem, nós estamos mesmo sendo decoloniais ou se estamos sendo apenas ‘uns bobões’. Certo?”. Ele concluiu: “Então acalmem-se, pensem e não fiquem repetindo refrão. Refrões são reproduzidos para nos tornar dóceis. Apenas pensem, porque a única maneira de confrontar o pensamento colonial é se opondo a ele no cotidiano, em sua maneira de viver, comer, andar, dançar, falar, pensar. Se você imita a fala do dono, você não se liberta". E uma das formas de fazermos isto é por (re)pensarmos em epistemologias, ontologias e praxiologias críticas, emancipatórias e contracoloniais.

 

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