Paulo José Cunha
Mesmo nos momentos de maior plenitude das liberdades democráticas, a censura sempre existiu no Brasil. Nas ditaduras de Vargas e na dos militares de 1964, havia instituições dedicadas exclusivamente à sua aplicação. O DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, na era Vargas, exerceu essa função sob o comando de Lourival Pontes, admirador de Mussolini e do fascismo. Na ditadura militar entrou em cena o DCDP – Departamento de Censura de Diversões Públicas – que abrangia também a censura à imprensa. Num e noutro contexto, jornais e emissoras tiveram de conviver com a presença física de censores em suas redações. E os músicos tinham de submeter suas letras para liberação, antes de fazer as gravações, sob pena de os discos serem retirados das prateleiras e destruídos. Na época, a figura de “Dona Solange”, chefe do DCDP, ficou famosa e odiada. Ganhou até uma música, Solange, versão de So Lonely, do The Police, feita pelo cantor Leo Jayme. A letra diz “E quando eu tento escrever/Seu nome vem me interromper” e “Para de me censolange...”
Partiu da ONG Repórteres sem Fronteiras a iniciativa de instituir o dia 12 de março como Dia Mundial do Combate à Cibercensura, uma censura, digamos, “mais sofisticada”, aplicada nos dias de hoje. A mesma ONG é responsável pela classificação mundial de Liberdade de Imprensa, permanentemente atualizada. Neste momento, segundo a ONG, os países onde a liberdade de expressão é mais sufocada pelos seus governos são: Eritreia, Coreia do Norte, Turcomenistão, Arábia Saudita, China, Vietnã, Irã, Guiné Equatorial, Bielorússia e Cuba. Na maioria desses países não existe imprensa livre, e os poucos órgãos de imprensa particulares estão sujeitos a controle rígido, publicando exclusivamente o que é do interesse de seus governos. Já estão sob o jugo da Cibercensura.
A Cibercensura é exercida pelo bloqueio e/ou remoção de conteúdo, proibição de publicações ou plataformas inteiras, especialmente conteúdos críticos aos governos, monitoramento de atividades online, através da vigilância de mensagens privadas e rastreamento de localização, além da manipulação de algoritmos com ajuste de visibilidade em feeds para favorecer narrativas governamentais e inibir críticas ou denúncias.
Com a redemocratização foram extintos no Brasil os organismos voltados ao exercício da censura, digamos, analógica. Mas ela continua existindo, desta vez por iniciativa das plataformas da internet. A Cibercensura é executada pela manipulação de algoritmos que favorecem ou escondem determinados conteúdos nas redes.
As tentativas de regulamentação das plataformas enfrentam lobby pesado de agentes da extrema direita que, ao contrário do que seria lógico, acusam a criação desse regulamento de praticarem... censura. Há, por exemplo, um projeto de regulamentação, conhecido como Projeto das Fakes News, parado no Congresso desde a legislatura passada. Ele foi retirado de pauta depois de sofrer ataques ferozes de big techs como Google e Telegram. Recentemente o ministro Alexandre de Moraes, do STF, afirmou que as big techs “bombardearam as redes dizendo que os parlamentares eram contra a democracia e a liberdade de expressão. Os algoritmos fizeram chegar milhares de mensagens aos parlamentares ameaçando e coagindo”.
A ausência de regulamentação provoca desde a judicialização do tema até um crescente e perigoso protagonismo das próprias plataformas, que promovem a Cibercensura direcionando algoritmos para favorecer ou desacreditar um perfil ou assunto, controlando assim a liberdade de acesso às informações na sua completude.
A Cibercensura é amplamente exercida em regimes autoritários, nos quais os governos controlam abertamente o livre fluxo de informações e restringem drasticamente conteúdos sensíveis. Mesmo em países com democracias mais consolidadas, como é o caso do Brasil, esses ataques também existem. Como as plataformas agem sem conceder acesso ao direcionamento dado pelos seus algoritmos – o que por si só já é um enorme empecilho pois se trata de área que exige sofisticado conhecimento técnico – o acionamento de defesa para a ação deles se torna praticamente impossível. Governo e cidadãos não sabem quais são os conteúdos impulsionados em massa e os que têm sua divulgação restringida.
Tal quadro justifica plenamente uma parada de reflexão neste Dia Mundial de combate à Cibercensura, que contribua para a tomada de uma posição drástica a esse respeito tanto pela conscientização a respeito quanto pelas providências legislativas e judiciais cabíveis. Sem isso, toda a sociedade, mesmo sem saber, continuará agindo na ingênua suposição de que exerce plenamente seus direitos quando, na verdade, está sendo sub-repticiamente manipulada, com efeitos danosos à liberdade individual e coletiva.
ATENÇÃO – O conteúdo dos artigos é de responsabilidade do autor, expressa sua opinião sobre assuntos atuais e não representa a visão da Universidade de Brasília. As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seu conteúdo.