OPINIÃO

 

Eduardo Guimarães Santos é doutor em Ecologia pela UnB e pesquisador em estudos sobre animais urbanos.

 

 

Helga Correa Wiederhecker é doutora em Ecologia pela UnB. Possui 30 anos de atuação em ensino e pesquisa.

Eduardo Guimarães Santos e Helga Correa Wiederhecker

 

Desde 2018, jornais e mídias locais inundaram moradores do Distrito Federal com notícias sobre capivaras, indo desde animais entrando em casas, mergulhando em piscinas, atravessando faixas de pedestres, até relatos de ataques a cachorros e pessoas. Textos anteriores exploram a existência de outros interesses em relação às veiculações nas mídias e não pretendemos aqui aprofundar nessas questões (para mais detalhes, veja os pormenores aqui). Nosso objetivo aqui é explorar os elementos comuns nas narrativas que levam a interpretações que não condizem com a verdade, dificultando o desenvolvimento de uma ação de coexistência com a espécie. Essa desinformação em relação às capivaras podem exacerbar conflitos, expondo os animais a um aumento de intolerância. De fato, a elevação do pânico/sensação de risco em relação a algo, não raramente, estimula o clamor das pessoas por soluções imediatas e, minimamente, faz com que a necessidade de eliminação seja considerada como dada.

 

Então, como acreditamos que decisões de manejo ambiental devem ser tomadas baseadas em evidências, vamos abordar as principais mentiras que vêm sendo divulgadas na mídia em relação às capivaras que vivem no Lago Paranoá, em Brasília. Essas afirmações podem ser encontradas em notícias vinculadas ao longo dos últimos anos nos mais diversos jornais.

 

1. Capivaras não ocorrem naturalmente em Brasília, logo são invasoras no local: essa afirmação é facilmente verificável e refutável. Primeiramente podemos fazer um estudo histórico e arqueológico. Com isso, verificamos que as capivaras têm um histórico de ocupação do continente que é anterior à chegada dos humanos (existe registros de capivaras entre 7 e 9 milhões de anos atrás, sendo que os humanos só chegaram no continente há cerca de 12 mil anos). Em segundo lugar, podemos pensar no histórico mais recente, na escala de vida dos humanos. Voltemos para 1892, antes mesmo de existir a cidade de Brasília. Nessa época, especialistas de diversas áreas foram enviados para a região com o intuito de averiguar a possibilidade de construção da capital do País. Essa expedição, conhecida como Missão Cruls, fez, além de estudos geológicos, climáticas, topográficos, anotações em relação a fauna. Nessas anotações consta, no capítulo intitulado “NOTÍCIA SOBRE A FAUNA – Pelo Dr. Cavalcante de Albuquerque”: “Todos esses roedores (ele lista alguns roedores como paca, coelho e preá) são caças muito apreciadas no logar, assim como a capivara [...] gigante roedor que é muito comum na lagoa Feia. Rio Preto. Samambaia e outros pontos”. Ou seja, as capivaras ocorrem amplamente na região, mesmo antes da construção de Brasília.

 

2. Existe uma superpopulação de capivaras: essa afirmação é mais difícil de refutar, pois exige um estudo populacional das capivaras. O interessante é que esse estudo já foi feito (acesse o sumário executivo aqui). A conclusão do estudo é de que não existe superpopulação. Na verdade, o estudo demonstra que, quando comparado a outras regiões e outros estudos, a densidade de capivaras está dentro da faixa observada, ficando bem abaixo de outras regiões. Ou seja, não existe um descontrole populacional de capivaras na região.

 

3. Capivaras estão associadas a carrapatos e geram risco de doenças: essa é uma afirmação que vem sendo vinculada em muitos estudos (principalmente realizados na região Sudeste do Brasil). O problema é que tal relação só pode ser afirmada através da amostragem e comprovação em relação a cada população de estudo. Ou seja, apesar de outros trabalhos indicarem um aumento de carrapatos em locais onde existem mais capivaras, essa não é a realidade em Brasília: em estudo publicado no ano de 2024 (Gomes et al. 2024), nós demonstramos que as capivaras não estão diretamente associadas aos carrapatos no Lago Paranoá, em Brasília.

 

4. Capivaras são animais perigosos que atacam humanos: rebater essa afirmação é fácil e pode ser verificável em Brasília. Pessoas nadam, se aproximam e batem foto dos animais ao logo de toda a orla do lago (veja também o exemplo de cafeterias no Japão). Mas claro que o animal pode exibir comportamentos de defesa quando se sente ameaçado (como é o caso dos ataques a cachorros registrados). Mas sabemos que isso não é comum, caso contrário, seriam relatados casos todos os dias devido a corriqueira presença simultânea de pessoas e capivaras nas diversas áreas verdes, incluindo o Zoológico de Brasília. Esse ponto pode ser melhor explicado fazendo comparações: buscando os dados do SUS sobre notificações de ataques de animais (datasus.saude.gov.br - SINAN), e pegando apenas a média dos registros dos últimos 5 anos, obtemos a ocorrência de 9.275 ataques por cachorro doméstico, 1.996 ataques por gato doméstico, e (pasmem, que problemão que precisa ser resolvido urgentemente!) 4 ataques por capivaras. Diante dos números, é inevitável questionar: por que então tantas notícias alarmistas sobre a presença das capivaras no lago e não com cachorros e gatos?

 

Então fica aqui a reflexão: tomaremos decisões sobre a vida dessas capivaras em Brasília baseado em informações mentirosas? Afinal, como demonstramos acima, elas já viviam em Brasília antes da gente, têm populações estáveis, não são as grandes responsáveis por carrapatos nem doenças e são dóceis. A verdade importa e deve estar no centro da tomada de decisão. O futuro desses grandes mamíferos tão icônicos depende disso. Não sejamos enganados por mentiras.



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