OPINIÃO

Perci Coelho de Souza é professor do departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília. Membro da Coordenação Local do FAMA-2018 e atual membro da Coordenação Executiva do Projeto de Extensão Vida & Água para ARIS.

Perci Coelho de Souza

 

Como é possível comemorar o Dia Mundial da Água (22/03)1, em meio a tantas contradições no campo socioambiental? Se considerarmos os relatórios recentes sobre desigualdade socioambiental no Brasil e no mundo, não há mais como “tapar o sol com a peneira” que se refere à crise hídrica mundial no contexto da “economia de mercado”.

 

No Brasil, segundo o Censo Demográfico de 2022, revela que, apesar de avanços na cobertura do saneamento básico, vivemos numa profunda desigualdade socioespacial e racial cristalizando disparidades persistentes no acesso à água e ao tratamento de esgoto.Naquele ano, a média nacional era de 62,5% da população acesso à rede de coleta de esgoto, mesmo assim essa realidade está distante para muitos, especialmente nas regiões Norte (22,8%) e entre populações pretas, pardas e indígenas.

 

Essa desigualdade no acesso ao saneamento básico também se reflete quando olhamos pelo ângulo socioespacial. São evidentes os sinais do "fracasso do saneamento básico” nas favelas, comunidades e periferias do Brasil". Nessas áreas, apesar de um acesso relativamente alto à água (86,4%), o esgotamento sanitário por métodos precários como valas (4,0%) e descarte em rios, lagos e córregos (7,9%) é significativamente maior que a média nacional quando incorpora os espaços concentrados da presença do Estado2.

 

Por outro lado, a Oxfam, em seu último relatório de janeiro de 2025, também destaca o agravamento da desigualdade global no Brasil, onde uma parcela mínima da população concentra a maior parte da riqueza. Essa concentração econômica inevitavelmente se reflete no acesso a serviços básicos como água e saneamento.

 

A crença de que o "mercado" seria o motor para a sustentabilidade e a universalização do acesso à água e ao saneamento se mostra falha. Mas os mais vulneráveis não são passivos diante dessa flagrante injustiça socioambiental.

 

Em 2018, para opor-se à retórica hegemônica do “Mercado da Água” manifesta no Fórum Mundial da Água, foi erguido pelos ‘de baixo’, no mesmo período, também em Brasília, O Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA). Por estes sujeitos coletivos, já se alertava e se denunciava " a feira de negócios”, que se tornaram os grandes eventos mundiais e locais eventos patrocinados pelos governos em parceria com grandes conglomerados do hidronegócio. A Guerra da Água em Cochabamba3, relatada pelos participantes do FAMA é um exemplo emblemático da resistência popular contra a privatização da água e seus impactos negativos no acesso.

 

Organismos internacionais também alertam para a "regressão nos ODS" (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) relacionados à água e saneamento tanto no Brasil como no planeta . Quase 40 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e cerca de 100 milhões não possuem acesso a sistemas de esgoto sanitário. Essa realidade contradiz a ideia de que a lógica do mercado, focada no lucro, seria capaz de garantir um direito universo a esse bem de valor socioambiental fundamental à vida não só de seres humanos.

 

A desigualdade ambiental, conceito que ganhou força nos anos 80 e 2000 no Brasil, explica como populações vulneráveis são desproporcionalmente afetadas pela falta de saneamento e pela degradação ambiental. A mineração e o agronegócio, frequentemente financiados pelo sistema financeiro global, exercem pressão significativa sobre os recursos hídricos, contaminando fontes de água e intensificando a escassez para as comunidades mais vulneráveis.

 

Diante desse cenário, o "Manifesto em Defesa da Água e pela Justiça Hídrica5" reafirma a água como um direito humano essencial e fundamental para a vida, opondo-se à sua privatização e defendendo a participação social na gestão dos recursos hídricos. A busca por justiça hídrica exige uma ruptura com a visão da água como mera mercadoria e a adoção de políticas públicas que priorizem o acesso universal e equitativo, reconhecendo as particularidades e necessidades das populações marginalizadas. A sustentabilidade da água não reside na falácia do "mercado", mas sim na garantia desse direito fundamental a toda forma de vida.

 

Referências

1. O Dia Mundial da Água foi criado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas através da resolução A/RES/47/193 de 21 de Fevereiro de 1993,Este dia deveriam ser observados as recomendações da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento contidas no capítulo 18 (Recursos hídricos) da Agenda 21.

2. A ausência do Estado na forma de políticas de saneamento é também explicitada na capital da Repúlica onde 56 ARIS (Áreas de Regularização de Interesse Social) tem que conviver, desde 2009, segundo o (PDOT) com 200 mil pessoas sem acesso à água potável da CAESB como informa o relatório do Projeto Vida & Água para ARIS da UnB.

3. A Guerra da Água da Bolívia, também conhecida como Guerra da Água de Cochabamba, designa uma revolta popular que ocorreu em Cochabamba, a terceira maior cidade do país, entre janeiro e abril de 2000, contra a privatização do sistema municipal de gestão da água, depois que as tarifas cobradas pela empresa Aguas del Tunari (filial do grupo norte-americano Bechtel)

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