OPINIÃO

Kleber Aparecido da Silva é professor do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas e do Programa de Pós-Graduação em Linguística e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Estudos Críticos e Avançados em Linguagens (GECAL) e o Laboratório de Estudos Afrocentrados em Relações Internacionais da UnB (LACRI). É bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq – 2A.  kleberunicamp@yahoo.com.br | kleberaparecidodasilva@gmail.com

Kleber Aparecido da Silva

 

“O importante é, contudo, não se esquecer que, em última análise, os nossos alunos precisam adquirir domínio da língua estrangeira para o seu próprio Inglês bem e para se tornarem mais aptos a enfrentar os novos desafios que o mundo coloca no seu caminho. São eles que têm que aprender a dominar a língua inglesa, jamais deixando que a língua inglesa comece a dominá-los”. (Rajagopalan, 2005, p. 45)

 

Língua materna, estrangeira, franca, adicional, mundial, global, multinacional, transnacional, internacional – como designar o inglês, usado por milhões de pessoas ao redor do mundo com os mais diferentes propósitos e que hoje se revela não só um produto cultural, mas principalmente econômico, social e (a)político?. Que “inglês” é este falado por Fernanda Torres no momento que ela foi agraciada como o prêmio Globo de Ouro de melhor atriz na Categoria Drama no Globo de Ouro? E que “inglês” é este que foi imposto por meio de um decreto presencial por Donald Trump para ser esta língua seja oficial dos Estados Unidos? E que “inglês” é este que ensinamos nas nossas escolas de Educação Básica no Sul Global? Considero estas questões de suma importância neste momento sócio-histórico, por esta razão, serão resgatadas e problematizadas neste artigo.

 

Quando optamos pela denominação língua franca para designar o momento atual da língua inglesa no mundo, sabemos que correríamos o risco de discordâncias. Mesmo assim, a escolha ou uso recai sobre o termo em virtude da necessidade de nos distanciarmos da denominação “língua estrangeira”, assinalando que vemos hoje o inglês como uma língua que atravessa fronteiras e que produz ambiguidades, sentimentos difusos, contradições. Há também o desejo de assinalar o fortalecimento do não nativo, mesmo conhecendo as restrições quanto ao uso também deste termo. No terreno movediço em que se (re)encontra quem se engaja neste diálogo, concordo parcialmente com o entendimento de Seidlhofer, uma das principais pesquisadoras nesta área, de que língua franca é “um sistema linguístico adicional que serve como meio de comunicação entre falantes de diferentes línguas maternas, ou uma língua pela qual os membros de diferentes comunidades de fala podem se comunicar entre si mas que não é a língua materna de nenhum deles – uma língua que não tem falantes nativos”. Me pergunto: comunicação para quê, por quem, para quem, onde e quando?

 

Reconheço, no entanto, que esta definição deixa de fora situações plausíveis para aprendizes ao redor do mundo, uma vez que se pode aprender a língua para interagir com falantes nativos e não-nativos. Como captar em um termo situações tão distintas quanto a de língua estrangeira e de língua franca? Mais ainda, faz sentido manter as distinções nativo/não-nativo, baseadas em noção de território? A sugestão de “World English” ou “World Englishes” também não parece dar conta da multiplicidade de sentidos que a língua inglesa pode adquirir em contextos localizados e que somente podem ser atribuídos por seus próprios usuários/ aprendizes. Paradoxalmente, as reflexões sobre essa nova condição têm se dado fundamentalmente no chamado “Círculo Interno” (países onde o inglês é usado como língua materna), havendo a necessidade de se promover novos olhares sobre a questão, a partir da perspectiva de estudiosos localizados especialmente no “Círculo em Expansão” (países que usam a língua inglesa como língua estrangeira).

 

E mais uma vez o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, nos surpreende com a assinatura de um decreto que determina que o inglês seja considerado o idioma oficial dos Estados Unidos. "(...) Estabelecer o inglês como língua oficial reforçará os valores nacionais compartilhados e criará uma sociedade mais coesa e eficiente". Me indago: o que são valores nacionais para o referido presidente? Qual é a compreensão que ele tem e mantem de uma sociedade coesa e eficiente? Qual é a concepção que ele tem de “Inglês”? Como (re)construir políticas linguísticas levando-se em consideração povos e comunidades que gostaríamos de privilegiar (entende-se comunidades periféricas e/ou marginalizadas”)?

 

A partir de pesquisas realizadas no bojo da Linguística, compreendida como um campo de estudo trans/inter/transdisciplinar que busca compreender aspectos referentes à língua/linguagem, o ensino da língua inglesa (das diferentes variedades linguísticas e culturais do Inglês) com fins emancipatórios, que visa à (trans) formação de cidadãos do mundo, precisa instaurar o conflito em sala, promover a confluência (nem sempre pacífica de) diferentes línguas, linguagens sociais, identidades e culturais, a fim de que o processo fortaleça os alunos, alargando sua visão cultural e de si próprio no contexto em que vive e no uso que quer e que precisa fazer da língua inglesa. Para que a aula de língua estrangeira/adicional venha a cumprir verdadeiramente seu papel (trans) formador, contribuindo para equacionar desigualdades sociais, é preciso que o professor reconheça e leve seus alunos a perceber, através das práticas pedagógicas que promovam transgressões em diversos sentidos e campos, que a diferença está em nós e não no outro.

 

Essa é uma das possibilidades de promover um ensino plurilíngue e cidadão tornando o que nos é familiar estranho, problematizando o que nos é comum, fazendo visíveis ações não percebidas rotineiramente e que nos parecem óbvias. Desse modo, entendemos que conseguiremos problematizar a compreensão do que é estrangeiro ou diferente. O ensino-aprendizagem de língua inglesa nos anos iniciais/finais da Educação Básica no/para a Améfrica Ladina significa, nesta perspectiva e dentre outras possibilidades, experienciar a sala de aula bakhtiniana, que se revela como um local em que possamos nos defrontar com embates culturais e com as diferenças constitutivas da sociedade multi/transcultural em que estamos inseridos, como também nos apropriar de discursos e conhecimentos que nos tornem suficientemente proficientes para lidar de forma eficiente com os desafios impostos pela era líquido-moderna (BAUMAN, 2001) que atualmente vivenciamos, nos variados e diferentes campos e esferas de interação social.

 

Conforme apresentado e discutido neste artigo, é importante desenvolvermos um olhar múltiplo e polifônico de se compreender o inglês e/ou “ingleses” na contemporaneidade. E uma das propostas que vislumbramos nesta perspectiva é concebermos o “World English” como um “fenômeno linguístico sui generis”, em constante transformação, que permite à língua estrangeira ser a língua de “todos aqueles que dela fazem algum uso no seu dia a dia, por mais limitado ou restrito que ele seja”. A partir deste posicionamento social e linguístico, acreditamos que possamos, continuamente, (re) (re) construir uma sala de aula de línguas que se mostre plurilíngue e transcultural nos mais diversos contextos educacionais presentes em nosso país.

 

Referências

BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.

RAJAGOPALAN, K. A geopolítica da língua inglesa e seus reflexos no Brasil. In: LACOSTE, Y.; RAJAGOPALAN, K. (Org.). A Geopolítica do Inglês. São Paulo: Parábola Editorial, p. 135-159, 2005.

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