Vanessa Chini
Brasília foi “intensamente pensada, resolvida e reduzida ao que importa: à concepção urbanística, que não será decorrência do planejamento regional, mas a causa dele”. O desenho purista é de fato simbólico e pragmático e materializou o espírito do século XX. O plano de Lucio Costa para a nova capital foi inovador e lançou mão de soluções consideradas vanguarda e modelo para outras realizações urbanísticas ao longo da década de 1960. Considera a essência da Capital e articula-se pouco com as cidades adjuntas, que viriam a compor a metrópole nacional.
O desenho do Plano Piloto é estruturado de duas vias que organizam o espaço, divide a poção de terra em faces Leste-Oeste e Norte-Sul, como em eixos cartesianos, articulados a fim de organizar espacialmente a cidade, fragmentando o território, hierarquizando vias, lugares e zoneando funções na cidade. Os eixos passariam a ser âncoras para identificação de pontos específicos.
A solução, entretanto, foi baseada em outras previamente testadas e de dimensão histórica como a representatividade do formato de cruz, a representatividade do poder político; elementos do mall inglês; da perspectiva barroca, para expressar dimensão cívica; experiências tradicionais europeias como Piccadily Circurs, Champs Élysées, Times Square, ou mesmo a Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro.
Suas características singulares foram reconhecidas como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (Unesco) em 1987. Anos depois, em 1992, Portaria Iphan de número 314, inscreveu a cidade no livro do tombo a fim de preservar as características e a articulação das quatro escalas: monumental, residencial, bucólica e gregária.
Lucio Costa, ao romper com a estrutura do quarteirão convencional, abrindo-o e transformando-o em um amplo bosque entremeado por blocos residenciais multifamiliares, de até seis pavimentos em pilotis livres, liberando o chão para uso público indistinto, concebeu uma nova maneira de morar em área urbana, estruturada no que ele denominou de escala residencial ou cotidiana.
O uso da cidade e a escala cotidiana começariam a se delinear ainda na inauguração. Aquele dia foi como espetáculo. Brasília despertava curiosidade e fez com que um formigueiro humano aparecesse para ver o desfile de cinco mil homens das Forças Armadas, as surpresas da esquadrilha da fumaça, a Parada dos Candangos e a queima de fogos. Embora o olhar parcial da narração de JK reforçasse o deslumbramento da ocasião, aquele momento foi marcado pela subversão de uso planejado para o Eixo Rodoviário, uma vez que recebia o caminhante para confraternizar:
Enquanto casacas e vestidos de baile eram vistos nos salões do Planalto, prosseguia, animada, a festa do povo no Eixo Rodoviário. Às 2 horas da manhã, quando retornei ao Alvorada, pude ver a enorme multidão que, apesar do frio, dançava e cantava na gigantesca plataforma de concreto armado (KUBITSCHEK, 1975, p. 387).
A festa, que se estendeu pela madrugada, mostrava-se espontânea e tinha como cenário a arquitetura ímpar, as Superquadras residenciais, a Plataforma Rodoviária, o Congresso Nacional e os Palácios. Aquele dia era apenas o prenúncio de que o texto urbanamente estruturado poderia ter novas leituras, usos e afetos. Sessenta e cinco anos depois, a verdadeira festa da jovem Brasília tangencia os edifícios representativos, mas não estão circunscritas a eles. Ocorre também no setor cultural, mas não se restringe a ele. Brasília tem sua grandeza representativa, mas não é isto apenas.
A celebração está onde o povo está. E ele está nos pilotis, nos centros das quadras, no Eixão do Lazer, nas feiras de rua, na Universidade (de Brasília), nas ocupações espontâneas que surgem e se modificam cada dia, inclusive nas cidades satélites, que estão sim integradas a este grandioso plano para desenvolvimento do país e interiorização da Capital Federal. O desenho urbano de Brasília vem ganhando novas interpretações, sentidos, interligações. A festa de aniversário está apenas começando.
Referências
BRUAND, Y. (1991). Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva.
CHINI, V.S.F. (2019). Eixão do lazer de Brasília: o Eixo Rodoviário Residencial e seu uso como espaço público. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Brasília: UnB.
COSTA, L. (1957). Relatório do Plano Piloto de Brasília. Depha. Brasília: GDF.
FICHER, S., & PALAZZO, P. P. (2005). Paradigmas urbanísticos de Brasília. Cadernos PPG-AU(Edição Especial).
KUBITSCHEK, J. (1975). Porque construí Brasília (2000 ed.). Brasília: Senado Federal.
REIS, C. M. (2015). Superquadra de Brasília: preservando um lugar de viver. Brasília: IPHAN
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