OPINIÃO

Anderson da Mata é professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília. Membro do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (CNPq) e do GT Literatura Brasileira Contemporânea da ANPOLL.

Anderson da Mata

 

Quantas vezes já ouvimos alguém lamentar pelo fato de o número de leitores ser cada vez menor nos dias de hoje? É uma queixa de especialistas (professores e pesquisadores), de formadores de opinião, de pais e muitas vezes dos próprios não leitores, que sabem dos obstáculos para se chegar ao livro e não conseguem superá-los, mesmo sendo afetados pelo consenso de que ler é bom. Por isso, quando a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, em sua sexta edição, divulgada em 2024, constatou que, pela primeira vez, o percentual dos entrevistados que se declaram não leitores foi maior do que o dos que afirmam ter a leitura como um hábito, o dado se tornou notícia com aquele tom de “eu já sabia”.

 

Essa mesma pesquisa, em suas edições anteriores, já indicava o declínio do hábito de leitura, confirmando algo que quem vive o cotidiano da leitura no Brasil – escritores, editores, críticos e, especialmente, professores de literatura e bibliotecários – já conhecemos: a tendência de perda do interesse pela leitura é consistente. E isso em se tratando da leitura de um modo geral, pois o número de leitores de textos literários é ainda menor. A questão mais óbvia que se coloca diante desse dado é: como podemos reverter a queda? No entanto, o convite que faço aqui é para, num passo atrás, nos perguntarmos: por que isso é um problema? O que podemos estar perdendo aos nos tornarmos um país que não lê literatura?

 

De uma forma resumida, dizemos que a leitura pode estimular nos leitores sua capacidade de concentração, sua imaginação, seu repertório de experiências, seu autoconhecimento, seu domínio da língua, entre outros atributos considerados muito importantes para a formação pessoal. Contudo, nada disso é garantido quando temos um livro na mão, pois a leitura depende de um letramento que a situe nas dimensões da vida do leitor: aprendizado, entretenimento, autorreflexão, entre outros. Essa pedagogia da leitura depende tanto do investimento na educação básica quanto numa infraestrutura para a leitura que falta à maior parte das cidades brasileiras: escolas públicas e privadas de qualidade, redes de bibliotecas, acesso amplo à internet e um mercado livreiro bibliodiverso. E é sempre importante lembrar que a literatura não melhora as pessoas, mas pode melhorar a vida de quem lê – e é nisso que devemos nos concentrar.

 

Em A arte de ler, a antropóloga Michèle Petit, ao tratar da leitura em contextos de adversidade, investe na ideia de que a leitura é a oferta de um espaço. A partir de depoimentos sobre a leitura que aproximam o ato de ler à construção de um espaço, ela afirma que lugar abre uma margem de manobra emocional para o leitor. Essa mesma ideia é reafirmada por Petit em Somos animais poéticos, de 2024, quando ela recupera dos depoimentos colhidos de leitores como metáforas para a leitura imagens como “fortaleza”, “bunker”, “casa”, “ninho”, “terra de asilo”, “país” – signos de segurança e de pertencimento.

 

Se formos acusar o que está sendo negligenciado na vida dos não leitores, está em jogo a limitação dos espaços. O mundo sem a leitura de literatura é, definitivamente, um mundo menor. Se a leitura oferece esse espaço, ela torna a vida de quem lê melhor, mais segura, mais ampla. O leitor é livre para habitar esse mundo como preferir, e isso tem de lhe ser garantido, como um direito, da forma como bem pontuou Antonio Candido em “O direito à literatura”. À sua ideia de que a experiência da leitura, por sua carga de vida, é um direito fundamental, podemos acrescentar que, se a leitura nos garante abrigos, assim como moradia é um direito social fundamental, esse espaço que habitamos quando lemos deve ser garantido a todos. Entre as metáforas dos leitores destacadas do trabalho de Petit está a de “país”: “A literatura é meu país” ou “Era todo um país que se abria, que expandia consideravelmente o lugar onde eu vivia”. Um país com um número decrescente de leitores é definitivamente um lugar menor, que está falhando inclusive em poder ser os países diferentes, melhores e novos que esses leitores poderiam inventar para si, para o outro, para a realidade na qual têm o direito de interferir.

 

Referências

CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura” em Vários escritos. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2017.

Instituto Pro-Livro. Retratos da leitura no Brasil. 6ª. Edição. 2024.

PETIT, Michèle. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. Trad. Arthur Bueno e Camila Boldrini. São Paulo: Ed. 34, 2009.

_____. Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise. Trad. Raquel Camargo. São Paulo: Ed. 34, 2024.

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