Zethe Viana Machado
Por muito tempo, a história oficial do Brasil ignorou vozes fundamentais para compreender a construção de nossa sociedade. Entre elas, a de Esperança Garcia, mulher negra, escravizada e considerada a primeira advogada do Piauí, que merece ser resgatada e celebrada não apenas como símbolo de resistência, mas como protagonista de uma luta por justiça que hoje ainda se repete.
Esperança Garcia viveu no século XVIII, em plena vigência do regime escravista. Em 6 de setembro de 1770, ela escreveu uma carta ao governador da então Capitania de São José do Piauí. No texto, o qual hoje nos chega como um dos mais emblemáticos documentos do período colonial, ela denuncia os maus-tratos que sofria, a separação de seus filhos e a violação de seus direitos enquanto batizada e membro da Igreja. Sua carta, escrita em português formal e com notável estrutura jurídica, evidencia não apenas sua alfabetização — um feito raro entre pessoas escravizadas — como também sua compreensão do direito e sua coragem em reivindicá-lo.
Mais do que uma súplica, a carta de Esperança é um verdadeiro habeas corpus moral. Nela, encontramos uma mulher que, mesmo acorrentada pela condição imposta pela escravidão, recusa-se a ser silenciada. Ela entende que existe um direito natural à dignidade, à maternidade e à fé — e, acima de tudo, acredita que pode e deve ser ouvida. Sua atitude é um ato pioneiro de advocacia, que lhe rendeu, em 2017, o reconhecimento simbólico pela Ordem dos Advogados do Piauí (OAB-PI) como a primeira advogada do estado e, em 2022, o reconhecimento pelo Conselho Pleno da OAB como sendo a primeira advogada do Brasil. No dia 1º de novembro de 2019, a Universidade de Brasília (UnB) renomeou um auditório da Faculdade de Direito com o nome de “Esperança Garcia”.
Por que, então, demoramos tanto a conhecê-la? A resposta está na forma como a história é contada. Durante séculos, os heróis de nossa narrativa oficial foram, majoritariamente, homens brancos, donos de poder e de terras. A Batalha do Jenipapo é outro exemplo dessa narrativa histórica distorcida. As mulheres negras, como Esperança Garcia, foram rebaixadas ao rodapé da história. Redescobri-la é mais que um ato de reconhecimento e de dar a ela o seu devido valor na história do Brasil. É, acima de tudo, reparar uma injustiça histórica que reina em nosso país.
Em tempos em que a cor da pele ainda determina quem tem acesso à justiça, à educação e à dignidade, lembrar Esperança Garcia é iluminar os caminhos que precisamos percorrer. Ela representa milhões de brasileiros que, ao longo dos séculos, resistiram em silêncio ou em palavras — como sua carta —, exigindo um país mais justo. Sua história não é apenas sobre o passado; ela denuncia o presente e nos faz um alerta sobre o futuro.
Falar de Esperança Garcia nas escolas, nas universidades, nos tribunais e nos meios de comunicação é um passo essencial para reescrevermos a memória nacional com mais verdade e menos omissão. É importante ressaltar que a luta por direitos no Brasil não começou com as elites do século XIX, mas com mulheres negras, escravizadas, que ousaram desafiar o sistema.
Hoje, quando uma mulher negra entra numa sala de audiência como advogada, quando exerce um cargo público ou outra posição de destaque, há em seus passos o eco de Esperança Garcia. Que sua história não seja lembrada apenas em datas comemorativas ou homenagens protocolares, mas que nos inspire a construir um país onde a justiça não seja privilegiada, mas um direito universal.
Esperança Garcia: uma voz negra que ecoa na história do Piauí e do Brasil.
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