Anelise Rizzolo de Oliveira Pinheiro
O tema escolhido para o Dia Mundial da Segurança Alimentar de 2025 (FAO) é: Segurança Alimentar: a Ciência em Ação, reforçando a importância da ciência na construção da segurança alimentar e nutricional. O Brasil é um país de vanguarda nesse tema, inspirando outros por sua abordagem dos problemas sociais como determinantes no acesso à alimentação.
Como destacou Josué de Castro, a fome não é um fenômeno natural, e sua causa não é a escassez de produção de alimentos. A fome, uma das faces da insegurança alimentar e nutricional, é um problema social, produzido pela ordem capitalista e pela abordagem hegemônica dos sistemas alimentares agroindustriais. A ciência deve ser cidadã e comprometida com a resolução dos problemas sociais, garantindo as necessidades e os direitos humanos, reconhecendo as interseccionalidades e as desigualdades na produção do conhecimento. A Universidade de Brasília (UnB) se soma a essa abordagem ao aderir à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.
No enfoque da Segurança Alimentar e Nutricional, construída no Brasil com a participação social dos Conselhos de SAN e a gestão interdisciplinar do Sistema Nacional de SAN (SISAN), a alimentação e a comida são interligadas, interdependentes e indissociáveis. Elas se configuram por meio de valores, normas, práticas, funções, lugares, rituais e atitudes nas relações entre classe, raça e gênero. Comer é um ato político. As formas e os sentidos do comer são múltiplos.
As culturas alimentares refletem as estruturas sociais e a forma como as sociedades se constituem, estando profundamente arraigadas nas práticas, rituais, ritmos e celebrações do cotidiano. De acordo com Norbert Elias, ao entendermos a alimentação como uma linguagem — uma gramática cultural — percebemos que os alimentos carregam historicidade, significados e simbolismos, dialogando com contradições, conflitos, subjetividades e identidades sociais. No entanto, os sistemas alimentares atuais, dominados por corporações, tratam o alimento como mercadoria, ignorando sua dimensão cultural.
Reconhecer a cultura como um dos determinantes das nossas escolhas alimentares é essencial para compreender seus limites e sua relação com a segurança alimentar e nutricional. Só comemos aquilo que é culturalmente identificado como comestível. Não compreendemos racionalmente por que, em algumas culturas, há aversão a comer insetos ou certos tipos de animais. Sabemos, por meio de pesquisadores, que o gosto é culturalmente construído, mas economicamente condicionado. Isso significa que, na realidade, as escolhas alimentares refletem relações políticas, econômicas e culturais da sociedade à qual pertencemos. Tudo o que as pessoas são, pensam e fazem — seus atos e consequências — carrega significados de uma prática coletiva. Por isso, muitas vezes, analisar o comportamento individual fora de um contexto não é suficiente.
Após a Segunda Guerra Mundial, a industrialização impulsionou o capitalismo e associou o processamento de alimentos à modernidade. A indústria alimentícia se posicionou como aliada das mulheres, promovendo ultraprocessados como solução prática, mas desvalorizando práticas tradicionais e ocultando desigualdades de gênero, raça, trabalho e poder. O agronegócio, com apoio estatal, promove um modelo destrutivo: uso excessivo de agrotóxicos, desmatamento e concentração de terras. Isso ameaça a soberania alimentar de indígenas, quilombolas e mulheres guardiãs da natureza. Os alimentos ultraprocessados apagam identidades culturais, rompem com tradições ancestrais, fazem mal a saúde e contribuem negativamente para a crise climática que nos assola, cada vez mais.
A comensalidade também revela desigualdades sociais e culturais. O Brasil tem raízes coloniais marcadas por racismo e sexismo nos sistemas culinários que configuram sua interculturalidade. A colonialidade alimentar está relacionada com classificações como: “comida de rico” ou “comida de pobre” e associa alimentos a gênero e idade.
O relatório da revista The Lancet (2019) identificou uma “sindemia global” — obesidade, desnutrição e mudanças climáticas — com causa comum nos sistemas alimentares. A lógica do lucro ignora patrimônios alimentares e práticas sustentáveis, agravando a insegurança alimentar, a perda de biodiversidade e a exclusão de povos tradicionais.
A fome ainda afeta 733 milhões de pessoas no mundo (FAO, 2023). A obesidade é mais prevalente entre os pobres, que consomem alimentos ultraprocessados, calóricos e pobres em nutrientes — expressão da “fome oculta” da insegurança alimentar e nutricional. O racismo estrutural e ambiental também se manifesta no acesso à alimentação. A divisão sexual do trabalho na cozinha reforça desigualdades históricas. A culinária brasileira, marcada pelo trabalho de mulheres negras, exige uma revisão crítica para promover justiça alimentar e equidade de raça e de gênero.
As ponderações levantadas nos levam a questionar se os sujeitos das políticas públicas de combate à fome e à insegurança alimentar e nutricional, como Bolsa Família, PAA e PNAE, têm sido escutados na construção das estratégias para seu enfrentamento. Neste Dia Mundial da Segurança Alimentar e Nutricional, é urgente refletir sobre alternativas que respeitem os territórios e os sistemas interculturais construídos como práticas de resistência e liberdade no Brasil. Combater desigualdades e promover a soberania alimentar são passos essenciais para um futuro mais justo e sustentável.
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