Sandra dos Santos Vitoriano
Em agosto, uma comparação inusitada viralizou nas redes sociais: a tornozeleira eletrônica como “sapatinho de cristal da Cinderela”. A piada, nascida de um episódio político, ganhou força nos memes e revelou algo incômodo sobre como nossa cultura mobiliza o feminino como recurso de rebaixamento. Escrevo sobre isso agora, em outubro, mês dedicado às crianças, porque é justamente nessa intersecção entre humor adulto e narrativas infantis que o problema se evidencia.
A associação entre um dispositivo de monitoramento judicial e o icônico sapatinho da Cinderela não é casual. Ambos prendem, ambos identificam, ambos marcam seus portadores. Mas há uma diferença crucial: enquanto a tornozeleira simboliza a vigilância do Estado, o sapatinho representa, na narrativa tradicional, a promessa romântica de transformação social. O que as une é mais revelador: ambas funcionam como marcadores de contenção.
Cinderela, esse conto recontado há séculos, carrega camadas de significados que vão além do romantismo superficial. Quando analisamos suas múltiplas versões da Gata Borralheira às adaptações Disney, encontramos algo consistente: uma jovem cujo valor é medido por sua capacidade de trabalho doméstico, por sua resignação ao sofrimento e, finalmente, por sua aptidão em calçar um sapato. O sapatinho não é apenas um adereço mágico; é um instrumento de identificação que determina quem merece ascender socialmente. É, literalmente, um dispositivo de controle social disfarçado de fantasia.
A tornozeleira eletrônica, por sua vez, não se disfarça. Ela é explícita em sua função: marcar, rastrear, limitar. Trata-se de uma medida judicial legítima, aplicada a alguém que responde por crimes gravíssimos em um processo que segue o devido rito legal. A questão não é a justiça da punição – essa é inquestionável. O problema está em como zombamos dela. Quando alguém associa o dispositivo ao sapatinho de Cinderela para ridicularizar o criminoso, opera-se um duplo movimento: ridiculariza-se o alvo ao feminiza-lo, e ridiculariza-se o feminino ao tratá-lo como humilhação, comparando-o à um criminoso condenado. A piada não questiona os crimes; ela usa “ser mulher” como a verdadeira sentença degradante.
O riso dirigido a um homem condenado que “virou Cinderela” só funciona porque, coletivamente, ainda entendemos “ser mulher” como uma condição inferior. Não é o dispositivo em si que causa o riso, mas a feminização que ele supostamente representa. O humor depende de um consenso tácito: há algo intrinsecamente rebaixante em ocupar posições ou usar objetos culturalmente codificados como femininos.
Em minha pesquisa doutoral sobre as representações do trabalho doméstico feminino na trilogia Cinderela, ficou evidente como essas narrativas infantis naturalizam a exploração do trabalho feminino enquanto vendem sonhos de salvação via casamento. A Gata Borralheira não questiona por que varre, cozinha e serve; ela apenas aguarda que um príncipe a reconheça. O sapatinho funciona como certificado de autenticidade numa economia afetiva onde mulheres são produtos que precisam “servir” perfeitamente.
Não por acaso, usamos essa mesma lógica quando queremos diminuir homens: associamo-los a símbolos femininos. Desde a infância, meninos aprendem que “chorar é coisa de menina”, que “correr como garota” é um insulto. O meme da tornozeleira-sapatinho é a reedição contemporânea de um script cultural antigo.
Outubro pode ser o mês das crianças, mas precisamos perguntar: que histórias estamos contando a elas? Que risadas estamos ensinando? Se continuamos usando o feminino como sinônimo de fraqueza ou humilhação, mesmo em piadas políticas, perpetuamos uma educação afetiva que desqualifica metade da humanidade.
O sapatinho de cristal aprisiona tanto quanto a tornozeleira eletrônica. A diferença é que romantizamos um e ridicularizamos outro, mas em ambos os casos, é sempre o feminino que paga o preço da nossa incapacidade de imaginar outras formas de estar no mundo. Talvez esteja na hora de não só rir pensando, mas de pensar antes de rir.
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