"Minha fala, escrita literária e ensaística, bem como minha opção por determinadas pesquisas e não por outras, nasce marcada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira."
Conceição Evaristo – escritora, militante do movimento negro e doutora em literatura
Nascida e criada na favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte, a escritora Conceição Evaristo tem como manancial de sua inspiração literária a vivência como menina e jovem "negra, pobre e favelada". Das memórias, sentimentos e vida cotidiana nesta condição, nasce o enredo de suas obras, processo por ela designado como escrevivência.
Suas poesias, romances e contos são também atos de militância em prol de direitos historicamente negados à população negra no Brasil. Não por menos, nesta quarta-feira (5), Conceição Evaristo foi ovacionada pela plateia que lotou o auditório Joaquim Nabuco, da Faculdade de Direito.
A noite marcou a abertura do II Congresso Internacional de Direitos Humanos e Cidadania, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGDH) e pelo Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam) da Universidade de Brasília.
Professora aposentada, experiente na alfabetização de crianças, jovens e adultos, Conceição Evaristo iniciou sua apresentação evocando o Artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH): "Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória."
“Privar o sujeito da leitura e da escrita, em uma sociedade que se rege pela palavra escrita, é deixá-lo na condição de uma cidadania incompleta”, enfatizou a convidada. Ela lembrou que, por meio do texto escrito, o indivíduo se instrui sobre as leis e conhece melhor a língua e literatura de seu país.
É também da perspectiva de direitos que ela entende apropriação do espaço de autoria e de publicação literária no país. "Talvez uma das atividades mais seletivas, no que tange ao reconhecimento de seus autores, seja a literatura. É permitido aos negros a presença na chamada cidadania lúdica, como o futebol e a música. Mas não há essa permissão em determinados lugares da arte", afirmou, sobre a penetração ainda recente das obras de autoras negras, mesmo nas universidades públicas.
Na UnB, durante este semestre, a autora foi introduzida em contexto acadêmico por meio da oficina de literatura Escrevivências – da inspiração à produção na perspectiva de Conceição Evaristo, conduzida na Faculdade UnB Planaltina (FUP). A ação foi liderada por estudantes e possibilitada via edital da Diretoria de Organizações Comunitárias, Cultura e Arte (Docca/DAC).
Além da experiência acumulada por todos os participantes, a oficina deixa como legado a doação de exemplares de obras da escritora à Biblioteca Central (BCE) da UnB.
"Verificamos que não existiam livros da autora no acervo da Universidade e achamos importante mudar isso. Sabemos que a UnB tem número crescente de estudantes negros, esse legado social é algo muito importante", afirmou a estudante de Ciências Sociais Rosânia Oliveira, uma das oficineiras.
LUTAS – Traçando um panorama histórico no qual o direito à instrução foi negado à população negra escravizada, Conceição Evaristo defendeu durante o encontro desta quarta que as ações afirmativas sejam compreendidas nesse contexto. “Há uma ignorância de quem pensa que a implementação das cotas foi uma medida que veio de cima para baixo. Todas as políticas públicas destinadas à população negra e afro-brasileira, inclusive na área da saúde pública, são conquistas das lutas e dos movimentos dessa população."
Como uma síntese de seu discurso, Conceição Evaristo afirmou que a luta pelos direitos humanos não tem apenas 70 anos – em referência à DUDH. “Há muito que os povos escravizados e os povos naturais tradicionais lutam pelo direito à vida sem qualquer teorização. Talvez quem ainda mais tenha que lutar pelos direitos humanos são os negros, os pobres, as mulheres, os índios.”
PARTICIPAÇÃO – Ao final do painel, o público teve oportunidade de tirar dúvidas e interagir com a estudiosa. Advogado e doutorando em Direito na UnB, Felipe Estrela aproveitou a ocasião para homenagear a escritora. “Teu verso é foz, encontro de águas negras, profundas palavras, memória; esse rio incontível que segue para além de nós”, disse, declamando poema de sua autoria.
O advogado conta que teve acesso à literatura de Conceição Evaristo pela indicação de mulheres que são grandes referências para ele na Bahia. “Gosto muito do eu-lírico de Conceição Evaristo para pensar a realidade brasileira, os afetos”, opina, mencionando a obra Poemas de Recordação.
“O direito é algo tão rígido. Por outro lado a literatura, a poesia e a arte são formas de comunicar assuntos importante por outros filtros, que não sejam só a razão”, acrescentou Estrela, que se apropria dos livros de Conceição para exercer a prática docente na área do Direito.
Para a historiadora Vilma Lopes, a obra da literata é uma fonte motivadora. “Quando conheci a obra de Conceição Evaristo, percebi que eu também podia escrever, porque me identifico muito com a ideia da escrevivência dela”, conta. “Já utilizei a obra Olhos d'Água como estratégia para levar os estudantes a se sentirem parte da História”, completa.
SOBRE – O II Congresso Internacional em Direitos Humanos e Cidadania segue até esta sexta-feira (7). A programação do evento conta com mesas-redondas, conferências, oficinas e minicursos.
O encerramento acontece às 19h de sexta, com a conferência Derechos Humanos y neoliberalismo, tensiones y desafíos, ministrada pelo filósofo e ativista em direitos humanos Manuel Gándara.
O evento é aberto ao público, exige inscrição prévia no Sistema de Extensão e confere certificado aos participantes cadastrados nas atividades. As mesas-redondas e conferências estão sendo realizadas no auditório Joaquim Nabuco, da Faculdade de Direito da UnB.