O que você sabe sobre os efeitos da aporofobia na sociedade? Ou sobre a iatrogenia resultante de determinadas políticas de Estado brasileiras? Com desenvoltura, simpatia e seriedade, abordando temas atuais e explicando termos assim – aparentemente complicados, mas de significado presente no dia a dia –, o neurocientista Sidarta Ribeiro prendeu a atenção das mais de 300 pessoas reunidas no anfiteatro 9 da UnB na noite desta quarta-feira (11). Ao fim, foi aplaudido de pé.
Com duração de duas horas e meia, a palestra proferida na aula inaugural do semestre para os cursos noturnos da graduação atraiu todo tipo de público. Curiosos calouros e veteranos entusiasmados, pais com crianças, senhores e senhoras admiradores da ciência. “Estou emocionado. Aqui nessa plateia tenho professores meus de ensino médio e graduação, tenho colegas, irmãos e irmãs da adolescência e até da infância”, disse o convidado.
De fato, antes de começar sua apresentação, Sidarta passeou pelos corredores do ICC e cumprimentou muita gente, como quem pertence à casa. O pesquisador que se notabilizou pelo sucesso recente de O Oráculo da Noite (2019), livro sobre a importância dos sonhos para o desenvolvimento das civilizações, formou-se biólogo na UnB dos anos 1990.
“Na minha vida adulta, os melhores anos foram aqui. A UnB me deu régua e compasso, tudo que eu fiz depois foi a partir disso”, declarou. Na abertura da palestra, Sidarta reverenciou mestres que influenciaram sua formação na Universidade, como Isaac Roitman, Mireya Suarez e Luiz Fernando Gouvea Labouriau – a quem se referiu diversas vezes durante a apresentação.
A aula do professor Sidarta teve um pouco de tudo: coronavírus, analfabetismo científico, agrotóxicos, terraplanismo, drogas, violência policial, carnaval, e claro, sonhos. Tudo mencionado ou detalhado à luz da ciência. “Essa conversa aqui é sobre o preço de não ter ciência, o preço de não ter cultura. Qual é o preço de não ter esse local, coração da democracia, onde as ideias são circuladas, conectadas, criticadas e avançadas?”, provocou.
LINHA DO TEMPO – Ele traçou um panorama da ciência no Brasil de 1900 a 2020, com foco no surgimento e nos altos e baixos de instituições e fundos de fomento destinados à área, como UFRJ, Fundação Oswaldo Cruz, SBPC, CNPq, Capes, Finep e Ministério da Educação. “Começamos muito tarde, com nossa primeira universidade sendo fundada em 1921 – a Universidade do Brasil, que hoje é a Federal do Rio de Janeiro”, introduziu.
“O que estamos vivendo agora é um momento muito crítico da história do país, talvez sem nenhum precedente. Um precedente institucional que se assemelhe, tem que ser certamente antes do Dom João VI”, disse, contextualizando que, após a chegada da Coroa portuguesa, o Brasil passou a receber investimento. Antes, o espírito vigente na colônia era apenas exploratório.
Para Sidarta, embora o período da ditadura militar (1964-1985) tenha sido cruel em muitos pontos, como nas perseguições políticas e assassinatos, foi uma época crucial para o avanço da ciência. “Não se pode dourar a pílula, mas, à diferença do que ocorre hoje, houve interesse genuíno por estruturar a ciência, a tecnologia e a inovação no país. É um contraste chocante com os dias atuais”, explicou. O diagnóstico do cientista prossegue: “Entre 2003 e 2010 vivemos o período áureo da ciência, da cultura e da arte brasileira. O orçamento da ciência no Brasil foi quadruplicado. Era o impulso que precisávamos para ser um país desenvolvido”.
“Em todos esses períodos, com maior ou menor quantidade de problemas e descalabros, institucionalmente, só andamos para frente. A novidade é andar para trás”, resumiu.
TRANSATLÂNTICO BRASIL – De 2011 para 2015, “o Titanic bateu no iceberg”, alude Sidarta. O professor destacou a avaliação equivocada do governo sobre o Ciência Sem Fronteiras – que teria mandado mais pesquisadores do que poderia ao exterior –, a queda no preço do petróleo e o desencadeamento da crise política como importantes marcos para “tudo começar a dar errado”.
“Hoje já perdemos muito, mas temos ainda mais a perder. É mais fácil reverter a situação, recuperar o que foi perdido e avançar do que deixar se perder mais”, concluiu, conclamando o público a se posicionar. “Vocês estão entrando em uma universidade pública, gratuita e de qualidade, mas o momento é de uma guerra, então se posicionem. Se responsabilizem pela sua formação e pela defesa da universidade.”
Como soluções para cessar a marcha retrógrada do país, Sidarta apontou a necessidade de reverter a Emenda Constitucional nº 95/2016, que limitou o teto de gastos públicos, e a de melhorar em aspectos sociais.
“Estamos nos acostumando com crimes inomináveis. As coisas estão acontecendo e precisamos acordar”, refletiu, referindo-se a tragédias anunciadas como os rompimentos de barragens em Minas Gerais e àquelas decorrentes dos excessos da polícia, como o assassinato da menina Ághata Félix e a chacina de Paraisópolis. “Aporofobia é medo de pobre e iatrogenia é quando o remédio causa mais mal que a própria doença – é apagar fogueira com gasolina. São problemas graves na segurança pública do Brasil”, ensinou.
O neurocientista fez uma ponte com o palestrante Ailton Krenak, convidado do #InspiraUnB diurno. “Soube que o evento foi ótimo. Procurem saber da vida dele, ele fala com muita clareza sobre coisas que precisamos ouvir e entender”, aconselhou. A coletividade e o espírito de cooperação mencionados pelo ativista foram valores retomados na fala de Sidarta, que pediu ao público atenção sobre o momento histórico que os indígenas enfrentam.
“Leiam jornais, falem sobre isso: está acontecendo um massacre. Não passa uma semana sem que uma liderança indígena seja morta. Isso não é problema deles. O Brasil tem uma responsabilidade histórica com os nossos indígenas, que estão na ponta de lança desse processo destrutivo que está em curso.”
ALÉM DA PALESTRA – Falando à comunidade reunida no anfiteatro 9, definido por ele como o coração da Universidade, o vice-reitor Enrique Huelva reafirmou que o tempo é mesmo de luta. “Somos uma universidade democrática, pública, gratuita, diversa e inclusiva e queremos continuar sendo, por isso contamos com o apoio de vocês para o que está se tornando uma batalha bastante intensa”, convidou, sendo bastante aplaudido.
A reitora Márcia Abrahão foi franca com os estudantes. Destacando a excelência da UnB, entre as melhores do Brasil e da América Latina, ela falou das oportunidades concedidas pela vida acadêmica e do esforço a ser despendido no cotidiano. “Vocês vão estudar muito. E é muito mesmo! Se vocês acham que estudaram muito para chegar até aqui, é porque ainda não têm noção de como será daqui pra frente.”
Em consonância com as falas do vice-reitor e do palestrante da noite, a gestora explicou a intenção por trás da escolha do anfiteatro 9 para realização do #InspiraUnB. “Esse é um auditório histórico para as lutas da UnB, um lugar que tem alma, e é importante vocês sentirem como essa instituição é pulsante, que nasceu para ser protagonista do seu tempo. É por isso que a gente incomoda tanto há 58 anos”, discursou, aclamada pela plateia.
E se engana quem pensa que os estudantes foram ao #InspiraUnB apenas para receber inspiração. Ao lado de músicos colegas de UnB, a aluna do nono semestre de Jornalismo Hallana Moreira ficou responsável pela atração cultural da noite e inspirou grandes reações no público.
Em Maria, Maria, de Milton Nascimento, não conseguiu segurar a emoção ao dedicar a canção à mãe, às avós e a tantas mulheres que sofrem discriminação e violência todos os dias. “Na hora que a emoção veio, foi inexplicável. Essa música fala sobre o que eu vivo”, admitiu.
Quando a voz de Hallana embargou, o anfiteatro inteiro, que já vinha aplaudindo a artista desde a passagem de som, segurou o andamento com palmas e vozes a plenos pulmões, lembrando o que é necessário para se viver e manter uma universidade pública, gratuita e de qualidade: “É preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre”.
A íntegra do evento #InspiraUnB desta quarta-feira está disponível no Youtube da UnBTV.