OPINIÃO

Gabriela Neves Delgado é professora da Faculdade de Direito da UnB e doutora em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Gabriela Neves Delgado

 

Neste primeiro de maio de 2023, no correr da terceira década do século XXI, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) chega aos 80 anos de existência. 

 

Integrada ao tempo, na sua dimensão constitutiva da mudança, no passar dos anos a CLT passou por várias alterações constitucionais, legislativas e jurisprudenciais que, no conjunto, provocaram mudanças inexoráveis na sua estrutura e no próprio Direito do Trabalho.

 

Na linha do tempo, é possível avaliar dinamicamente a CLT em distintos tempos do processo histórico-legislativo trabalhista brasileiro, em períodos de fluxos e refluxos no sistema de proteção ao trabalho assalariado, considerada as seguintes fases: o período de institucionalização do Direito do Trabalho, dos anos 1930 a 1945; o período de expansão da legislação trabalhista, de 1945 a 1988; o período de consolidação democrática constitucional do Direito do Trabalho brasileiro, com a Constituição de 1988; e a fase de intensa flexibilização trabalhista, sobretudo com a denominada reforma trabalhista, da Lei n. 13. 467/2017.      

 

A fase de oficialização ou institucionalização do Direito do Trabalho no Brasil teve início em 1930, desenvolvendo-se até 1945, num cenário histórico de regime de exceção, em que se alternou uma constituinte com aprovação da Constituição de 1934 ao lado de vários anos de regime autoritário.   

 

Durante o desenrolar dos anos 1930 e no inaugurar da década de 1940 foi gestada uma organização maior em favor da sistematicidade dos textos legais trabalhistas no país. Em 1930, por exemplo, o Governo Vargas criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, pelo Decreto 19.443/30. Em 1939, o Decreto-lei n.1.237 instituiu a Justiça do Trabalho brasileira, embora ainda vinculada ao Poder Executivo. Seu funcionamento, contudo, somente ocorreu dois anos depois, em 1º de maio de 1941, mas ainda não integrada ao Poder Judiciário. Apenas com a Constituição de 1946 é que a Justiça do Trabalho passou a integrar o Poder Judiciário, inclusive no tocante às garantias clássicas asseguradas à magistratura.  

 

Em 1935, após reprimir a atuação da Aliança Nacional Libertadora, Getúlio Vargas decretou o estado de sítio no país, instituindo, em 1937, um regime autoritário, de profunda centralização e autoritarismo políticos, respaldado por uma Constituição outorgada e pela proliferação de decretos-leis.

 

Em 1º de maio de 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, em solenidade pública ocorrida no dia do trabalho, no Rio de Janeiro, naquela época a Capital da República do Brasil. Já se passaram 80 anos.

 

Tida como o principal marco legislativo trabalhista brasileiro a regular o conflito capital-trabalho, a CLT foi diploma jurídico originalmente direcionado às relações de emprego urbanas, sobretudo as do setor industrial sob gestão taylorista-fordista. Também assumiu papel definitivo a favor da institucionalização de um modelo de contratação trabalhista próprio, com maior isonomia material, afastando-se da desproteção ao trabalhador típica das contratações civilistas.

 

Seu paradoxo, no entanto, foi ter sido gestada em período autoritário da vida político-institucional brasileira, num cenário corporativista desenhado pela Constituição de 1937. A marca autocrática corporativista transpareceu no Direito do Trabalho institucionalizado na época, especialmente em relação ao Direito Coletivo do Trabalho e aos seus institutos jurídicos próprios, como, por exemplo, com o controle político-administrativo do então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio sobre toda a estrutura e atuação operacional dos sindicatos e a estruturação corporativista dos sindicatos.

 

A reorientação política promovida em grande parte dos países do capitalismo central após o término da Segunda Guerra Mundial, com a implantação do paradigma do Estado de Bem-Estar-Social, provocou impactos no Brasil, contribuindo para a queda da ditadura Vargas, em 1945. 

 

Ponto enigmático e de grande relevância nessa evolução política do Brasil no pós-guerra é que a CLT permaneceu em vigor, assumindo a dinâmica de um código do trabalho, sobretudo por expandir o espectro normativo por ela regulada, o que impediu a sua cristalização no curso histórico.   

 

Entre os anos 1945 e 1988, o Brasil avançou para importante período de expansão da legislação trabalhista. Neste período, a CLT manteve posição de destaque no cenário jurídico, sendo identificada como o instrumento mais bem-sucedido de inclusão econômico-social de trabalhadores na história brasileira.

 

São vários os exemplos da legislação extravagante à CLT responsável pela ampliação de direitos ou criação de novas parcelas trabalhistas naquela época como, por exemplo, a Lei nº 605/1949, reguladora do descanso semanal remunerado e em feriados, em patamar mais avançado do que no texto original de 1943; a Lei nº 4.090/1962, que instituiu o 13º salário; a Lei nº 4.214/1963 (posteriormente revogada pela vigente Lei nº 5.889/1973), que produziu a inserção, mesmo com ressalvas, do trabalhador rural na órbita da CLT (extensão da legislação trabalhista para o campo, na década de 1960) e a Lei nº 5.859/1973, que fixou os primeiros – ainda que bastante restritos – direitos trabalhistas e previdenciários para o empregado doméstico (tais direitos foram posteriormente ampliados pelo parágrafo único do art. 7º da Constituição de 1988 e também pela Lei n. 11.324/2006, até culminar na promulgação da EC nº 72/2013 e da Lei Complementar n. 150/2015).

 

Todavia, apesar da presença de significativa legislação extravagante responsável pelo avanço da proteção ao trabalho regulado naquela época, o país também apresentou uma série de leis esparsas com nítido propósito de reduzir o patamar de direitos institucionalizado na CLT, o que se denominou de período de refluxo no sistema de proteção ao trabalho assalariado.    

 

Esta produção legislativa de caráter flexibilizatório teve início em 1966, com a promulgação da Lei 5.107, instituidora do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). É que esse instituto retirou a segurança do trabalhador, instituindo um sistema alternativo ao da estabilidade no emprego, facilitando sobremaneira as dispensas de empregados, por também romper com as indenizações compensatórias. Em 1988, a Constituição Federal universalizou o sistema do FGTS esvaziando ainda mais o conteúdo normativo da estabilidade no emprego, proposta originariamente pela CLT.  O período de refluxo avançou na década de 1970 com a regulamentação do trabalho temporário pela Lei n. 6019/1974, seguida de desmedido avanço da terceirização trabalhista no país.        

 

Foi com a promulgação da Constituição de 1988 que a CLT passou por uma travessia guiada pelos mandamentos constitucionais de proteção ao trabalho humano.      

 

Apesar de o Texto Constitucional de 1988 firmar possibilidades jurídicas de flexibilização trabalhista, pela via da negociação coletiva e particularmente no tocante aos temas do salário e da jornada de trabalho (art. 7º, VI, XIII e XIV, CF/88), sua influência sobre o Direito do Trabalho é no conjunto progressista, humanista e inclusiva. 

 

A Constituição de 1988 de fato representou um marco na história político-jurídica do Brasil, alterando significativamente o conteúdo primário da CLT e sua arquitetura original, sobretudo se considerada a centralidade dada à pessoa humana e ao direito fundamental ao trabalho digno. Nessa medida é que se considera que a Constituição de 1988 é a lente corretora da CLT, servindo como filtro para uma leitura sempre atualizada de seus dispositivos. 

 

Leia aqui a íntegra do texto de Gabriela Neves Delgado.

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