MEMÓRIA

Jovens universitários e secundaristas que se rebelaram contra a ditadura se reúnem 50 anos depois em debate na UnB

 


Professora aposentada, Maria Helena da Cunha acredita que o reencontro pode reavivar sonhos por uma sociedade mais justa. Ex-colegas de turma reuniram-se durante evento promovido pelo Departamento de História da UnB para recordar experiências vividas durante o regime militar. Foto: Beto Monteiro/Secom UnB

 

Há 50 anos os tempos não eram nada fáceis. Em maio de 1968, universitários e secundaristas reuniam-se no Distrito Federal para protestar contra a ditadura e a repressão política. A data histórica para o movimento estudantil da França também gerou desdobramentos na trajetória de alunos da UnB e do extinto Centro Integrado de Ensino Médio (Ciem), uma escola idealizada por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira que ficava dentro do campus da Universidade de Brasília. Para relembrar parte dessa história, o auditório do Instituto de Ciência Política (Ipol) sediou, na última sexta-feira (25), o debate A rebelião dos estudantes: Brasília, 1968.

 

À frente da organização, o professor de História na UnB Daniel Faria destacou o radicalismo imposto contra os manifestantes e seus ideais naquela época. "A Universidade sofreu violentamente o impacto da ditadura militar em seu projeto e concepção iniciais. Muitos dos problemas e impasses que vivenciamos hoje se devem a essa herança”, afirmou. Como integrante da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade, o docente fez questão de relembrar os desaparecidos políticos que estudavam na UnB, como o líder estudantil Honestino Guimarães, que foi preso, torturado e possivelmente assassinado em 1973 pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

 

Ao lado do professor Daniel Faria esteve o jornalista e ex-aluno do Ciem e da UnB Antonio de Pádua Gurgel, conhecido como Padu. O egresso é autor de livro e de documentário de mesmo título do evento. Parte dos presentes foi colega de Gurgel durante os anos de regime militar. Impedido de estudar na UnB por dois anos, mesmo após ser aprovado em vestibular, Padu enfrentou outros problemas e chegou a ser preso em 1977. Participante de todas as manifestações estudantis da época, o jornalista foi dirigente do primeiro grêmio estudantil do Ciem e vice-presidente da organização dos estudantes secundaristas de Brasília. “O que nos movia era o desejo e a esperança de um Brasil solidário, fraterno. Esse desejo está presente em nós até hoje”, declarou.

 

“De maneira geral, há uma nostalgia sobre o ano de 1968, não apenas de universitários. Muitos jovens que eu conheço falam que queriam ter vivido aquela época”, acrescentou Gurgel sobre o clima daqueles tempos. Mas, apesar de todos os ideais propulsores, ele se lembra bem da forte repressão empregada como resposta. A partir do Decreto 477, editado em fevereiro de 1969, a tensão ficou ainda maior. A resolução levou o polêmico Ato Institucional n. 5 (AI-5) para as instituições de ensino superior, definindo infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados das universidades. Padu conseguiu seu ingresso na UnB somente em 1971, devido a um processo judicial movido por um advogado que se solidarizou com a causa dos estudantes, considerados pelo regime militar como ameaças à ordem social. 

 

O desejo de escrever um livro sobre a história vivida pelos estudantes era grande, mas se concretizou apenas quando o jornalista teve acesso a cópias dos processos e outros documentos da época. Assim, foi possível unir os relatos e a experiência vivida à cronologia dos principais fatos que marcaram o movimento estudantil de 1968. “O período foi uma revolução em todos os aspectos, mudanças de costumes, emancipação feminina e sexual”, apontou. A primeira edição foi lançada em 2002 e, dois anos mais tarde, a obra foi reeditada, com um caráter mais político e histórico.

O professor de História Daniel Faria e o jornalista Antonio de Pádua Gurgel, durante o debate A rebelião dos estudantes: Brasília, 1968. Foto: Beto Monteiro/Secom UnB

 

A partir de então, o autor passou a receber pedidos dos leitores para transformar o livro em filme. Em 2007, juntamente com a cineasta Alvarina Silva, Gurgel produziu o documentário. “Nem tudo era política. Há lado humano que não ficou muito explícito no livro”, reflete. Mesmo incompleto, o filme, que ainda não possui uma versão final, foi exibido no encontro e trata de diferentes questões sobre aquela década, como o apoio das mães aos manifestantes, o uso de drogas, a liberdade sexual, o exílio e desaparecimento de estudantes.

 

UNIDOS POR UM IDEAL  Em paralelo ao evento, cerca de 200 ex-alunos do Ciem que participaram do movimento no fim da década de 1960 promoveram um reencontro em Brasília neste fim de semana. Muitos não se viam desde aquele período. No auditório do Ipol, a tarde que relembrou os 50 anos da rebelião dos estudantes foi marcada por abraços, sorrisos e muita emoção.

 

Professora aposentada, Maria Helena da Cunha foi uma das entrevistadas no documentário. Ela faz comparações entre o passado e o presente e acredita que o reencontro da turma é capaz de mobilizar novamente o sonho por uma sociedade mais justa e igualitária. “O lado doloroso disso tudo é que naquela época vivíamos uma ditadura e agora atravessamos um momento de falta de liberdade e cerceamento.”

 

A psicóloga Sandra Botelho diz que a mensagem que deve permanecer de toda a experiência é “mais amor, por favor”. Ela deixou uma indagação aos colegas: “O que vocês estão fazendo para transmitir o conhecimento e a vivência adquiridos? Temos o nosso micromundo, que são os nossos filhos e netos; se conseguirmos plantar neles a semente da esperança já será um grande legado.” 

O professor Humberto Brasiliense Filho viveu os anos da ditadura. Para ele, o regime comprometeu os avanços da educação no Brasil. Foto: Beto Monteiro/Secom UnB

 

Dos tempos que viveu, o professor Humberto Brasiliense Filho tirou uma lição sobre educação que, segundo ele, foi o principal alvo do regime instaurado em 1964. “Ou você educa para a obediência ou para a inteligência. O golpe desconstruiu um sistema educacional e a cultura brasileira que se formava. Criou uma estrutura de mídia e desmantelou o sistema de urbanização do país”, opinou.

 

Vindo diretamente do Uruguai, onde reside, o diplomata Ney Fernandes comemorou a oportunidade de reencontrar os amigos de escola, mas deixou um alerta sobre os tempos difíceis. “Este não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida. As imagens exibidas no documentário trazem lembranças de um tempo que não gostaríamos de ver sendo repetido."

 

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