PERFIL

Casados há quase 50 anos, professores Chang Chung Yu Dórea e José Garrofe Dórea trabalharam com afinco e prazer para alcançar o topo de suas carreiras

 

Até dezembro de 2019, a Secretaria de Comunicação publica perfis de professores eméritos da UnB. Essa é uma iniciativa de valorização daqueles que fazem parte da Universidade e foram reconhecidos pelo atributo em comum que guardam com a instituição: excelência.

 

José Garrofe Dórea e Chang Chung Yu Dórea são professores eméritos da Universidade de Brasília. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Em meados de 1950, cinco crianças causavam o maior alvoroço em Campina Grande, na Paraíba. O motivo? A nacionalidade chinesa, de Chang Chung Yu Dórea e seus quatro irmãos. Naquele tempo era fato inusitado topar com imigrantes vindos do outro lado do mundo, e os campinenses queriam vê-los a todo custo. Aglomeravam-se, por exemplo, na saída do Colégio Imaculada Conceição para espiar as meninas que lá estudavam. A madre superiora exibia as alunas como se fossem um troféu.

“No mundo atual, você liga a televisão e vê tudo, naquela época não. Só existia revista em preto e branco. E minha família estava lá, em carne e osso. Janelas se abriam quando passávamos na rua. As pessoas corriam e se acotovelavam para nos ver. Chamavam parentes e amigos das cidades vizinhas. Chegavam de jumento, tocavam a campainha lá de casa”, relembra Chang, professora emérita da Universidade de Brasília.

Nascida na província de Chungking, a docente desembarcou em território brasileiro aos quatro anos de idade, junto com a família e um grupo de aproximadamente 200 imigrantes. Eles tentaram se firmar em Porto Alegre e Curitiba, mas os negócios não deslancharam, então, deixaram a região Sul.

“Depois, meu pai se envolveu com mineração de xelita e tantalita, em Currais Novos, no Rio Grande do Norte. As famílias não ficaram lá porque era uma cidade muito pequena, não havia escolas. Um lugar bom para se viver era Campina Grande, onde fiquei por uns cinco anos”, conta.

À medida em que o tempo ia passando, Chang aproveitava sua juventude para colecionar certificados. Fez inglês, datilografia, corte e costura e até curso de cozinha. “Na qualidade de imigrante eu tinha que ser mais precavida para encarar o que o futuro pudesse me reservar. O que viesse eu resolveria”, ri.

Quando o filho mais velho da família estava próximo de entrar para a universidade, a mãe e os cinco irmãos se mudaram para São Paulo. O curso superior também estava no horizonte de Chang, que pensou em ser engenheira “para arrumar um emprego em alguma multinacional”.

Todavia, o caminho da jovem pela área de Exatas não foi exatamente uma escolha pessoal. “Na visão dos meus pais, existiam duas profissões. O primeiro filho fez Engenharia. A segunda, Medicina. Aí eu acabei na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo”, afirma. Suas duas irmãs mais novas não romperam com a tradição: uma é médica e a outra, engenheira.

Com irmãos médicos e engenheiros, Chang Chung Dórea foi conquistada pela Matemática. Foto: Raquel Aviani/Secom UnB

 

Chang terminou a graduação em Engenharia Elétrica em 1968. A essa altura, já era uma cidadã naturalizada. “Se alguém me falar que sou menos brasileira que qualquer um aqui, teremos que conversar”, brinca.

Foi para os Estados Unidos, fazer mestrado na mesma área. Chegou na University of Massachusetts em 1970, onde conheceu um brasileiro que mudaria os rumos de sua vida.

A OUTRA PARTE DA HISTÓRIA O dia 20 de julho de 1969 tornou-se marco para o mundo. Foi quando o americano Neil Armstrong entrou para a história como o primeiro homem a pisar na lua. José Garrofe Dórea ficou sabendo da notícia no momento em que seu avião aterrissava nos Estados Unidos. O hoje professor emérito da UnB chegava ao território ianque para fazer seu mestrado, financiado pela Comissão Fulbright.

Graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, Dórea nasceu em Capela, Sergipe. Um lugar atípico, movimentado à época pela indústria do açúcar. “Tinha colégio de freira, cinema, hospital, médico, dentista, pintor, escultor, música sacra e um núcleo de pessoas que valorizavam a educação”, enumera.

“Nos orgulhávamos da cidade. Talvez essa forma de convivência interiorana tenha criado um objetivo na criançada daquele lugar. Queríamos ser alguma coisa. Deu certo para uns, para outros não”, filosofa o sergipano.

Ao completar 18 anos, foi para Recife para “desenvolver possibilidades econômicas” e começou a trabalhar em um escritório, entregando correspondências. A grande virada na vida de Dórea veio com um programa da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). O órgão oferecia cursinhos e bolsas para interessados nas áreas de Geologia, Engenharia, Agronomia e Veterinária.

“Não precisava ter muito conhecimento, bastava ser um menino esperto. Então, fui selecionado. Ganhei a bolsa, fiz inglês, entrei para a universidade. Sem o auxílio eu estaria até hoje entregando correspondências naquele sol do Recife”, imagina.

Ora pelos estudos, ora pelo gogó – nas palavras de Dórea – ele foi se destacando. Terminou o curso de Medicina Veterinária e, pouco tempo depois, estava nos Estados Unidos para a pós-graduação.

Então, os caminhos de José e Chang se cruzaram. “A possibilidade de aglutinação é muito rápida quando dois estudantes estrangeiros se encontram. Existe uma força centrípeta que atrai os semelhantes para um centro comum”, provoca o sergipano.

A convivência resultou em casamento, que já dura 47 anos. Reservados, os professores não deram muitas pistas sobre a vida conjugal. “A vida privada é a vida privada”, desvia José Dórea. Entre causos e risos, pouca coisa escapou:

Repórter: – Na UnB, a professora tem fama de rígida. Em casa ela é assim também?

José Dórea: – Um pouco mais.

Chang Chung: – Tenho a impressão que a palavra final é minha.

José Dórea: – Eu diria que é minha: sim, senhora. (risos)

RETORNO AO BRASIL Em Massachusetts, Chang Chung Yu Dórea concluiu o mestrado em Estatística e foi a primeira brasileira a obter o título de doutora em Matemática no exterior. “Fui fazer a pós em Engenharia Elétrica. Me pediram para cursar disciplinas sobre processos estocásticos, probabilidade. Aí acabaram me convidando para estudar na Matemática mesmo”.

José Garrofe Dórea também foi trilhando novos caminhos científicos na pós-graduação. “Quando fui para os Estados Unidos, meu interesse era estudar problemas relacionados ao desenvolvimento da produtividade da agricultura nos trópicos. Fui mudando, mas eu sempre trabalhava com conhecimentos de base. Com a Bioquímica Nutricional, pude ir adaptando”, resume o mestre e doutor nesta área.

A brasileira naturalizada chegou a trabalhar como analista de sistemas na empresa IBM, em Nova Iorque, mas seguir carreira na docência foi percurso quase natural para o casal. Chang estava grávida do seu primeiro filho quando recebeu o convite para ser professora na Universidade de Brasília. E a proposta era dupla: ela e o marido seriam contratados pela instituição. Naquela época, o ingresso de professores não era feito por meio de concurso público, sendo “raridade ter docentes doutores no quadro”, de acordo com Chang.

Os dois quiseram, então, voltar e ter o bebê no Brasil. “Se meu filho estiver me ouvindo, acho que vai ficar chateado comigo. Hoje em dia todo mundo quer ser estrangeiro e a gente teve que forçar a barra para ele nascer no Brasil. Não passava por minha cabeça ter um filho americano”, revela Dórea.

Com bom humor, Chang Chung Yu e José Garrofe, o casal Dórea, contou episódios de suas vidas. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Chang estava grávida de oito meses quando saíram dos Estados Unidos. “Defendi minha tese em Massachusetts no dia 23 de março de 1975. Meu filho nasceu em São Paulo, em 12 de maio.”

“Parece que somos dois extraterrestres. Você tem a chance de um filho seu nascer nos EUA e você traz para cá. Hoje, isso não ecoa em civismo, mas em loucura. Por que esses caras fizeram isso com uma criança inocente? É que somos de outra geração, de outro país. Éramos daquele Brasil, não desse!”, exclama.

A professora esperou o filho completar dois meses para aceitar a proposta de emprego na Universidade de Brasília, no Departamento de Matemática. “Ele fez dois meses em julho. Assumi o cargo em 12 de julho de 1975 e em agosto eu estava dando aula”. Alcançou o posto de professora titular, o mais alto da carreira, em 1987.

José Garrofe Dórea foi um dos pioneiros na graduação em Nutrição, à época vinculada à chamada Faculdade de Medicina da UnB. “Encontrei o professor João Bosco Renno Salomon, pessoa maravilhosa que me acolheu e então começamos a montar o curso de Nutrição”, conta.

O emérito faz questão de destacar o protagonismo da instituição de ensino nas políticas públicas da área de saúde. “Era um elenco de professores fantásticos. Além de João Bosco, tínhamos os professores Vera Bezerra e David Luiz Boianovsky. Este último elaborou a base teórica do tíquete-refeição, implementado pelo Ministério do Trabalho”, exemplifica.

Outro programa iniciado nos laboratórios da Nutrição, segundo Dórea, foi a merenda escolar. “O Salomon idealizou o perfil calórico-nutricional dos produtos que eram industrializados e vendidos a todo o Brasil. Importante falar sobre isso porque foi lapidar o papel que a Universidade de Brasília teve dentro da política nacional de saúde. Mudamos e orientamos muitas diretrizes do então Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, o Inan”.

CARREIRAS Em quatro décadas na UnB, Chang orientou mais de 30 teses e dissertações, supervisionou cinco estágios de pós-doutorado e coordenou vários projetos de pesquisa financiados por instituições nacionais e estrangeiras. Foi ainda coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Matemática por 13 anos.

Hoje, é pesquisadora nível sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Concentra seus estudos principalmente na área de Probabilidade, com ênfase em Inferência em Processos Estocásticos, Estatísticas Extremais, Algoritmos Estocásticos, Processos de Risco e de Extremos e Cadeias de Markov Não-Homogêneas.

Publicou mais de 60 artigos em revistas internacionais, possui obra com selo do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e escreveu vários capítulos de livros. Atua também como pesquisadora associada sênior no Departamento de Matemática da UnB. Foi homenageada pela UnB com o título de Professora Emérita em novembro de 2018.

O emérito José Garrofe Dórea é referência internacional na área de Ecotoxicologia, sobretudo, em pesquisas sobre contaminação por baixas doses de mercúrio. É defensor expoente do fim do uso do timerosal, substância à base do metal pesado e usada como conservante em vacinas para bebês e crianças.

Pesquisador 1A do CNPq, tem mais de 230 artigos publicados em periódicos científicos, além de capítulos de livros. Orientou cerca de duas dezenas de teses e dissertações, prestou consultorias internacionais e participou de inúmeros congressos. Recebeu o título de Professor Emérito em julho de 2015. Também foi homenageado pela Faculdade de Ciências de Saúde da UnB, que deu o nome do docente a seu Núcleo de Nutrição.

CURIOSIDADES Os dois filhos do casal emérito fizeram graduação em Engenharia, na Universidade de Brasília. Mais velho, Camilo Dórea é docente da UnB, no Departamento de Ciência da Computação. Caetano ministra aulas na Université Laval, em Québec (Canadá), onde mora.

“Tenho muita gratidão por essa Universidade. A família toda se criou aqui. Moramos um tempo na Colina. Aqui no campus tinha uma creche excelente e gratuita, que recebia crianças de professores e funcionários até os dois anos de idade. Eu saía daqui da Matemática e ia amamentar”, relembra Chang.

Os eméritos sugerem em tom de brincadeira que até os cachorros da família mereciam seguir carreira acadêmica. “Sempre tivemos um boxer. O primeiro faleceu há muito tempo, o Carrasco 1. Depois vieram o Carrasco 2, 3, 4, 5. Paramos no Carrasco 6, ele teve de ser sacrificado porque estava com leishmaniose”, lamenta Chang.

Gratidão: a UnB proporcionou momentos lindos na vida de Chang Chung Yu Dórea. Foto: Raquel Aviani/Secom UnB

 

Dórea logo completa a frase, alegando que os seis cachorros eram idênticos. “Tinham a mesma cara, as mesmas coisas, as mesmas pintas. Eram escolhidos a dedo. Todos com pedigree. Com os títulos que eles tinham, seriam professores e talvez eméritos”, gargalha.

O casal coleciona boas histórias da época em que começaram a trabalhar na UnB. À propósito, os professores se mostram mais descontraídos ao relatar situações vivenciadas dentro da Universidade.

“Me recordo muito bem quando os meninos eram pequenos. Discutíamos muito pelo direito de trabalhar no fim de semana. Alguém tinha que ficar com as crianças e os dois queriam trabalhar”, sorri Chang.

Chang: – Quando chegamos aqui em 1975, o laboratório de Nutrição tinha pouca coisa. De repente, meu liquidificador não estava mais em casa porque ele levou para o laboratório. A panela não estava mais em casa porque ele levou para laboratório. Minhas coisas sumiam o tempo todo. Até a linha do meu telefone pessoal ele levou para o laboratório.

Dórea: – Para se ter uma representatividade você tem que ter comunicação. A Universidade não tinha telefone. Você queria telefonar para alguém, como fazia? E como alguém iria lhe alcançar?

Chang: – Aí as pessoas faziam interurbano no meu telefone e eu que pagava a conta. Naquela época era caro, não era como hoje em dia.

Dórea: – A linha era o preço de um Volkswagen usado. E depois ainda peguei briga com alguns colegas que afirmavam que o telefone era público. Como público? Era meu!

Chang: – O meu telefone. Tinha que registrar no Imposto de Renda. Ele ficou instalado por uns 15 anos no Laboratório de Nutrição. E eu pagava a conta.

Dórea: – E momentaneamente a linha ainda foi patrimoniada pela Universidade.

Chang: – Tive que pedir para retirar o patrimônio porque a linha telefônica era minha.

CONSELHOS “É um desserviço à juventude você querer mostrar caminhos”, responde José Garrofe Dórea quando questionado sobre o segredo do sucesso acadêmico. Entretanto, faz uma pausa e arrisca um palpite: é preciso gostar do que se faz.

“O segredo não é chegar aqui como professor titular ou emérito. O importante é ser feliz, se realizar. Ser professor não é para todo mundo, ser cientista não é para todo mundo. Então, seja feliz e procure agir com integridade. Faça o mínimo de dano a você, aos outros, ao ambiente, à sua família”.

Mais pragmática, Chang fala em perseverança. “O início da carreira é difícil. Você escreve um trabalho, escreve outro e as ideias não chegam. É insistir, não desanimar e trabalhar. Dei minha vida pelo Departamento de Matemática. Sem falsa modéstia, acho que sou uma boa professora. E aparentemente os alunos gostam de mim. Se eu voltasse no tempo, faria exatamente as mesmas coisas”, orgulha-se.

 

Leia também os perfis dos eméritos José Carlos Coutinho, Alcida Ramos e Pedro Tauil.

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