ENTREVISTA

Com o tema Que língua falam nossas universidades?, líder indígena será o palestrante do evento de recepção diurno

"Estamos num túnel do tempo invertido", diz o convidado a respeito dos retrocessos na defesa dos indígenas no Brasil. Arte: Igor Outeiral/Secom UnB

 

O primeiro semestre letivo de 2020 da Universidade de Brasília começa na próxima segunda-feira (9). Como parte da programação de recepção à comunidade acadêmica, nos dias 10 e 11 de março acontece o #InspiraUnB. Neste ano, os palestrantes do evento de abertura são o líder indígena Ailton Krenak e o neurocientista Sidarta Ribeiro. Eles falam ao público diurno e noturno, respectivamente.

 

Na terça-feira (10), às 9h30, no Centro Comunitário Athos Bulcão, campus Darcy Ribeiro, o ativista Ailton Krenak vai abordar a língua falada na universidades. Krenak abordará a transformação que a presença de epistemologias dos povos da floresta pode trazer para o ensino superior. “Eu acho que a presença viral do pensamento da natureza nesses ambientes pode criar transformação, pode mudar. Eu falo da presença viral porque ele precisa ter a potência de se diferenciar de todo esse estandarte que é o pensamento acadêmico”, introduz.

 

Ailton Krenak é reconhecido internacionalmente por sua atuação em defesa dos povos indígenas e do meio ambiente. Ativo nas lutas e movimentos sociais no Brasil, participou da Assembleia Constituinte de 1988, colaborando com a elaboração da Constituição Brasileira. No campo acadêmico, o convidado é professor Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora desde 2016.

 

A Secretaria de Comunicação da UnB conversou com o palestrante e traz para você pensamentos de Ailton Krenak sobre meio ambiente, educação e direitos indígenas.

 

Secom: Em uma entrevista recente, você falou que quando os seringueiros passaram a viver dentro da floresta, eles viram o que os indígenas viam e isso os uniu. Você acha que essa ligação intrínseca com a natureza é algo que a população que vive apartada desses contextos consegue compreender?

 

Ailton Krenak: O seringueiro, que vivia em várias regiões do Brasil, fora da floresta, foi para a Amazônia colonizar a floresta e foi reeducado para viver na floresta e enxergá-la com os olhos que os índios enxergam. Foi uma transformação positiva e impensada para quem vive nos centros urbanos, em cidades que são verdadeiros sumidouros de energia. Apesar de todo o esforço para tornar esses lugares sustentáveis, eles, definitivamente, não têm nada de sustentável. São aglomerados enormes, lugares que amontoam gente e intensificam atividades de consumo de energia, que exaurem a energia do planeta. É nas grandes metrópoles que você vê que o ser humano está totalmente embalsamado no concreto. Eu não acho isso uma visão alentadora e eu acho que essa gente que se dissociou da natureza dessa maneira, pelo menos por algumas gerações, não vai conseguir fazer nenhum outro contato com a floresta ou com uma vida mais implicada com o ciclo da natureza, porque criaram muitos vícios, muitas necessidades de consumir energia elétrica, consumir toda essa facilidade artificial da vida que a cidade oferece. Na verdade, as grandes cidades são Unidades de Tratamento Intensivo de gente que tá desplugada da vida e, se não sair fora disso, não vai se reconciliar com vida nenhuma.

 

Qual é o cenário das lutas indígenas do Brasil atualmente?

 

Olha, a gente tem uma diversidade grande de situações quando a gente pensa o Brasil, especialmente por ser esse país continental. Você tem os kaingang lá no Rio Grande do Sul, os xetá, os xokleng, os Guarani e você tem os Yanomami e os makuxi wapixana lá na fronteira com a Venezuela. Em Mato Grosso, tem os kaiowá, então você tem uma diversidade tão grande de situações e contextos regionais que generalizar uma resposta sobre isso pode parecer uma falta de cuidado com a diversidade. Se nós já vivemos historicamente essa violência do estado, no sentido de integrar essas comunidades, hoje nós estamos enfrentando uma intensificação dessa violência com o objetivo de aniquilar essa diversidade. Isso é grave, porque configura genocídio. A Constituinte de 1988 tinha botado um termo nessa violência e redirecionado a política do estado brasileiro para uma espécie de reparação, uma política reparatória. De uma hora para a outra, isso foi tudo invertido e o comando mais óbvio que está sendo percebido é de que a vida dos índios não vale nada e os territórios desses povos podem ser ocupados por qualquer outra atividade: garimpo, mineração, madeireira. Então, tem uma declaração de fato do estado brasileiro de que os direitos dos índios podem ser violados, apesar de todos os compromissos internacionais, das convenções, e da vigilância dos organismos internacionais sobre os direitos humanos e os direitos históricos dos povos indígenas. A ameaça hoje é muito mais visível e grave do que há 30, 40 anos. Estamos num túnel do tempo invertido.

 

O genocídio dos povos indígenas vem sendo denunciado há bastante tempo. Você acredita no poder de intervenção dos organismos internacionais? Qual o papel destas denúncias?

 

Eu não acredito no poder de intervenção destas instituições que estão vinculadas aos convênios internacionais, à Convenção de Genebra, à Convenção 169 da OIT, à Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas. Esse conjunto de protocolos e documentos criam um ambiente cultural e tentam criar alguma coesão política em relação a determinados temas, mas eles não são instrumento de intervenção em lugar nenhum. Os estados têm autonomia de fazer o que querem dentro das suas fronteiras, e isso é uma pena. Eu não acredito que a convenção e os acordos internacionais tenham poder além do sentido de dar publicidade ao compromisso que os estados nacionais têm e criar uma certa obrigação de respeito e de cumprimento desses protocolos, desses acordos. Como nós estamos tendo a nossa Constituição aviltada publicamente, a gente tem apelado para esses convênios como uma maneira de alertar que, mesmo nossa Constituição sendo insuficiente para alertar as autoridades públicas, eles estão sujeitos a, no mínimo, um julgamento público fora das nossas fronteiras.

 

Qual é a importância da presença de epistemologias subalternizadas – como são as indígenas – sendo discutidas dentro do ambiente acadêmico? Como essas epistemologias que consideram o humano parte do todo podem dialogar neste contexto acadêmico?

 

Eu não conheço muito a natureza do funcionamento interno das instituições acadêmicas. Mas eu acho que a presença viral do pensamento da natureza nesses ambientes pode criar transformação, pode mudar. Eu falo da presença viral porque ele precisa ter a potência de se diferenciar de todo esse estandarte que é o pensamento acadêmico – se ele simplesmente se alinhar com isso, ele só vai ser mais uma assimilação do pensamento crítico dentro desse aparato todo, que é a produção acadêmica. Eu acho que os jovens, principalmente aqueles que estão entrando nesse caminho, precisam estar alertas e manter alguma fidelidade à sua herança ancestral, ao pensamento que ele aprendeu na sua origem, se possível em sua língua materna, para que ele não se perca nesse emaranhado de teorias que tem afastado o ser humano do verdadeiro sentido da vida e tem criado uma vida artificial, ao ponto de fazerem propaganda de uma coisa totalmente absurda que é a ideia de uma Inteligência Artificial. Essa coisa de Inteligência Artificial é ficção científica. Isso não tem nada a ver com a vida, nós não somos robôs. Se nós queremos viver aqui na Terra, é bom nós aprendermos a linguagem da terra, não ficar inventando elucubrações que afastam a gente do sentido de comer saudavelmente, respirar ar puro, beber água pura, boa. Porque senão nós vamos inventar uma inteligência tão artificial que depois a gente vai beber água de esgoto, que nem o povo do Rio de Janeiro.

 

Ficou interessado? Então programe-se para estar lá, no dia e na hora marcados. Quem não puder comparecer a esta e a outra aula inaugural, ministrada por Sidarta Ribeiro, terá a chance de acompanhar as transmissões ao vivo pelo Facebook da UnBTV. Na noite da terça-feira (10), Ailton Krenak será homenageado no auditório do Departamento de Música.

 

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