OPINIÃO

Debora Diniz é professora Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero. Graduada em Ciências Sociais, mestre e doutora em Antropologia, todos pela UnB, com pós-doutorado pela UnB e pela Universidade de Leeds (Inglaterra),  É membro da Câmara Técnica de Ética e Pesquisa em Transplantes do Ministério da Saúde e membro do Advisory Committee do Global Doctors for Choice /Brasil. Vice-chair do board da International Womens Health Coalition. Atua nos temas bioética, feminismo, direitos humanos e saúde. Foi pesquisadora visitante na Universidade  de Leeds, Reino Unido (Estudos de Gêneros); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Instituto de Medicina Social); Instituto Oswaldo Cruz (Comunicação, Informação e Saúde); Universidade de Michigan, EUA (Faculdade de Direito); Universidade de Toronto, Canadá (Faculdade de Direito e Centro de Bioética); Universidade de Sophia, Tóquio (Instituto Iberoamericano); Cermes, França (Centro de Pesquisa, Medicina e, Ciência, Saúde, Saúde Mental, Sociedade); Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos (Departamento de Sociologia); e Universidade de Leiden, Holanda (Departmento de Antropologia). Entre vídeos produzidos e publicações, é também autora de seis livros e tem oito organizados.

Débora Diniz


Louise Ribeiro morreu do jeito que morrem as mulheres na casa ou pelos amores – ela foi assassinada por um colega de curso que se apresenta como ex-namorado. Louise foi vítima de feminicídio, uma palavra nova para representar práticas antigas e entranhadas na cultura patriarcal brasileira: a explicação do matador confesso é que não suportava o fim do relacionamento afetivo e um ímpeto feroz o assombrou ao reencontrá-la. A verdadeira explicação é que os matadores de mulheres são homens que nos consideram como posse ou propriedade. Eles matam suas companheiras, namoradas, esposas ou filhas. Arrependem-se em seguida; quase todos confessam o crime, uns poucos se suicidam. Não há enredo amoroso nesta tragédia, mas brutalidade naturalizada pela desigualdade entre homens e mulheres.

Louise era uma jovem mulher de 20 anos, estudante de Biologia da Universidade de Brasília. Seu algoz, um conhecido da vida cotidiana. O enredo trágico é descoberto pela confissão do matador – ele teria pedido à Louise que acalmasse seu plano suicida. Ao final de um abraço de acolhimento, a golpeou e dopou com um lenço encharcado de clorofórmio. Se a história da emboscada for verdadeira, a dor é miserável: a moça foi ao seu encontro para cuidar do sofrimento. Ao vê-la, um gesto cruel o moveu: peço desculpas por repetir a violência que escutei com a autoridade de quem investiga – Louise foi asfixiada, seu rosto e genitália foram queimados. O algoz cogitou estuprá-la, mesmo já estando morta. Se assim foi, o matador queria mais do que assassiná-la, era preciso inscrever no cadáver o horror do ódio.

O corpo de Louise foi largado em um matagal próximo ao campus. A geografia da tragédia importa por, pelo menos, duas razões. A primeira porque desconcerta as elites que imaginam ser a violência contra a mulher um destempero de homens da periferia, os miseráveis trabalhadores e sobreviventes da pobreza. É verdade que há maior concentração da violência contra a mulher, e do feminicídio em particular, entre mulheres negras e precarizadas. Mas a história de Louise nos provoca a entender como esta é uma prática social disseminada de homens contra mulheres. A segunda é que, falsamente, se acredita que a entrada de um jovem homem no panteão da civilização, a universidade pública, seria suficiente para alterar práticas abusivas de masculinidade. A morte de Louise é como um pesadelo – nos exige acordar com pressa, pois a universidade precisa assumir-se como um parlatório público do horror que é a violência contra a mulher. Diferente do já feito, precisamos nos estranhar para além dos departamentos de estudos de gênero ou de mulheres. É preciso enfrentar os homens abusadores nos cursos de Medicina, Engenharia ou Física. Eles são homens comuns, professores, servidores, estudantes e familiares, ali entre nós e ao nosso lado.

A violência contra a mulher faz parte do mundo em que habitamos. O desamparo vivido por Louise ao se ver diante de seu algoz – a imagino tão solitária na tortura da morte – deve nos mover para a indignação. Há quase trinta anos faço parte da Universidade de Brasília; fui estudante, agora sou professora. Doutorei-me como feminista, entro e saio de sala de aula com uma agenda ampla para a igualdade de gênero. Meus alunos se incomodam mais com o feminino de minha voz que com minhas interpelações sobre as hierarquias sexuais entre eles e nós. Depois da morte de Louise, me acanharei menos: o corpo torturado daquela jovem mulher mostrou-me que é preciso mais, pois é pouco o que fazemos. Terei mais pressa, esquecerei as boas maneiras de intelectual.

Louise nos obriga a viver o luto pela perda e pela falência pedagógica da universidade. Por Louise, suspenderei minha tranquilidade de conviver em uma instituição civilizada: reconheço a barbárie do gênero como estando por ali, na sala de aula, nos corredores e laboratórios, no encontro diário que terei com os estudantes homens. Com a tragédia desta jovem mulher, retorno à Universidade de Brasília como se me encontrasse em uma comunidade desconhecida. Falarei do gênero, a palavra maldita para as escolas, e não perderei tempo justificando-me sobre sua urgência. Louise será corpo presente. Desdenharei dos homens conservadores que me acusarem de ideóloga – serei o testemunho de que Louise morreu porque nos falta sensibilidade feminista na universidade.

Texto publicado no jornal Correio Braziliense de 16 de março de 2016.