OPINIÃO

Henyo Trindade Barretto Filho é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Graduado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo. Atua nas áreas de Antropologia e Ciências Ambientais, nos temas: relações interétnicas, ecologia política, políticas públicas (ambientais e indigenistas) e perspectivas interculturais na educação, povos indígenas, políticas indigenista e ambiental, meio ambiente e unidades de conservação, gestão territorial e ambiental.

 

Henyo Trindade Barretto Filho



A reação das autoridades e grupos econômicos dominantes às primeiras notícias que chegaram do município de Viana, Maranhão, sobre o violento e covarde ataque aos indígenas Gamela, são expressivas da crueldade do racismo em nossa sociedade e de como este ameaça o pleno reconhecimento e efetividade dos direitos territoriais dos povos indígenas no país.

 

A agressão resultou em cerca de treze feridos e tudo sugere que teve a forma de um linchamento incitado por políticos locais e regionais, tendo circulado notícias sobre eventuais mutilações, caracterizando uma ofensa bárbara e cruel. O Ministério da Justiça, em sua primeira nota sobre o ataque, referiu-se aos Gamela como “supostos indígenas”. Já o governo do Maranhão, declarou não ser legalmente responsável por conflitos envolvendo “supostas terras indígenas” – ignorando que os direitos indígenas originários à terra são reconhecidos independentemente da providência da demarcação. Por sua vez, a Frente Parlamentar Agropecuária soltou uma “nota oficial” na qual repudiou “invasões de propriedades privadas praticadas por indígenas da etnia Gamela”, sugerindo que ONGs fomentam o conflito no campo com a desculpa de que os indígenas estariam reocupando “supostas terras indígenas”.

 

A crueldade que caracterizou a violência contra os Gamela revela a intenção clara de aterrorizar coletividades inteiras e deveria ser repudiada veementemente pela sociedade. Ao contrário, as instituições mencionadas acima se expressaram de modo a alimentar suspeição sobre a identidade étnica dos Gamela e descaracterizar o seu pleito de reconhecimento das terras que tradicionalmente habitam. A violência sofrida pelo grupo, que deveria ensejar acolhimento, gerou, a rigor, vulnerabilização adicional na forma do desprezo – quando não repulsa – pelas demandas de reconhecimento e de direitos dos Gamela.

 

Em recente nota, a Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia, observou que há fontes de informação histórica e antropológica em quantidade e qualidade suficiente tanto para que os Gamela sejam reconhecidos como um povo diferente quanto para que a Funai proceda aos estudos de identificação e delimitação da sua TI. A nota destaca parte do acervo de conhecimentos antropológicos sobre os Gamela e a terra que habitam, notadamente os trabalhos de Curt Nimuendaju (1937) e Maristela de Paula Andrade (UFMA, 1999).

 

Evidencia-se na referida nota que os Gamela têm uma longa história de contato com a sociedade colonial, que remonta ainda ao século XVIII, quando foram alcançados pelas frentes de expansão na região dos rios Mearim e Codó. Após sucessivos aldeamentos no século XVIII, os Gamelas receberam uma doação régia de terras, que atravessou os séculos XIX e XX, ficando conhecida como Terra dos Índios, com superfície aproximada de 10.000ha. Foi nessa área que foram visitados por Curt Nimuendaju no ano de 1936 e estudados a partir da década de 1980. Na década de 1970, a realização de inventários cartoriais e o cercamento de áreas comuns deu início ao conflito fundiário que se prolonga até os dias de hoje.

 

Os Gamela reivindicam do estado brasileiro a demarcação da sua terra, baseados no seu sentido de pertencimento a ela e buscando evitar a sua fragmentação. As “retomadas” que promovem visam reaver o acesso a essa terra. Só a efetivação dos direitos constitucionais dos indígenas pode levar a segurança jurídica e a paz social para todos na região.

Palavras-chave