OPINIÃO

Vanessa Vieira é jornalista na Secretaria de Comunicação da Universidade de Brasília.

Vanessa Vieira, da Antártica

 

Pôr do sol nas montanhas antárticas. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

 

Uma paisagem difícil de traduzir em palavras ou, até mesmo, em fotografias. Inicio este relato com a sagaz tentativa de compartilhar, ao menos uma gota, da incrível experiência que vivi na trilha percorrida entre a Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF) e o Refúgio 2 – ambos construções brasileiras localizadas na Ilha do Rei George, na Península Antártica.

Guiados pela alpinista do Programa Antártico Yoshimi Nagatani, nove aventureiros e eu partimos para uma jornada que, sem intercorrências, duraria cerca de oito horas: tempo suficiente e necessário para realizar o deslocamento de oito quilômetros, fazer as paradas científicas de coleta e experimento em campo, bem como as pausas para descanso e alimentação.

Pesquisadores caminham sobre picos nevados. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

 

Logo percebi que a caminhada, além de longa, seria desafiadora. Há outros obstáculos para além dos ventos gelados que tocam qualquer parte descoberta de nossos corpos e nos fazem, a todo tempo, estar cientes da presença tão próxima das gigantescas geleiras que nos rodeiam. Dar passos firmes não é tarefa simples. As montanhas cobertas por neve envolvem trechos cheios de rochas soltas e de terra fofa – resultado do degelo que acontece com a chegada do verão polar.

Era hora de subir o primeiro e mais íngreme dos morros que encontramos pelo caminho. A princípio sem atropelos, todos chegamos ao cume do monte. A partir dali era necessária firmeza para encarar descidas escorregadias e as novas escaladas que nos faziam suar, resultando em uma confusa sensação ora de frio, ora de calor.

O continente gelado, entretanto, nos pregaria uma peça. Em questão de instantes, o céu ao nosso redor ficou encoberto de densas nuvens cinzas. Já não era mais possível ver o topo dos morros que nos cercavam. Nos entreolhamos ressabiados, afinal, já havíamos presenciado anteriormente as tempestades repentinas que acontecem na Antártica. Sem palavras audíveis, nos perguntávamos se deveríamos prosseguir.

Grupo de pesquisadores e comunicadores em meio à imensidão gélida. Foto: Luiz Rosa/UFMG

 

Experiente em território antártico, nossa alpinista Yoshimi resolveu seguir adiante. Um tanto inseguros, copiamos seus passos, nos agarrando à esperança de chegar ao Refúgio 2 antes que o tempo virasse de vez. Foi uma caminhada ansiosa, difícil. Mas, tão logo alcançamos o módulo brasileiro da Ilha do Rei George, as nuvens escuras deram lugar aos mais cintilantes raios de sol que já contemplei em minha vida.

A esta altura da 36ª Operação Antártica (Operantar), que somava quase duas semanas em solo e mares antárticos, já havíamos aprendido a lição de que a mãe natureza é quem manda no mais inóspito continente do planeta. Nesse dia ela gentilmente descortinava parte de sua exuberância bem diante de nossos olhos.

Representante da fauna antártica, Biguá-de-olhos-azuis flutua sobre placa de gelo descolada. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

 

Desafiada a prosseguir alguns metros adiante, caminhei em direção a uma gigantesca parede glacial. Cada vez mais perto dessa imponente barreira no caminho, uma única frase ecoava dentro de mim: “Finalmente cheguei ao fim do mundo”. É assim que muitos chamam a Antártica e, para mim, aquele paredão garantia que não haveria mais nada o que desvendar neste dia. Era o fim da caminhada e, afinal de contas, o que mais eu poderia desejar?

Reservamos um bom tempo a contemplar e registrar as belezas do lugar. Blocos e mais blocos de gelo embelezavam as águas, algumas vezes cristalinas, outras vezes azuladas. Sentar-se à beira desta praia era um espetáculo não só para os olhos, mas também para os ouvidos. O som das calmas ondas e do leve vaivém do mar traduzia perfeitamente a tranquilidade ímpar deste fim de tarde.

De tempos em tempos, um estrondo distante ecoava, chamando nossa atenção para o desprendimento de parte das enormes geleiras – fenômeno nem sempre visível, já que por vezes acontece na parte interna das capas de gelo. Os ruídos curiosos dos animais antárticos, com destaque para os pássaros e pinguins, somavam riqueza à composição visual e sonora.

Porta do Refúgio 2, na Antártica, foi moldura para retrato do pesquisador Juan Manuel, geólogo do Instituto Antártico Argentino. Foto: Vanessa Vieira/Secom UnB

 

Diante da paisagem austral, janela e porta do Refúgio 2 se tornaram para mim a moldura que faltava para um icônico retrato. No pequeno abrigo, encontramos cama e cobertores, kit de medicamentos, alimentos e outros itens importantes em situações emergenciais. O calor, a acolhida e o conforto que encontramos me fizeram lembrar dos relatos que lera sobre a lendária Expedição Endurance de 1915, a última excursão da chamada Idade Heroica da exploração da Antártica. O líder Ernest Henry Shackleton e sua tripulação enfrentaram dias sombrios. O navio que os havia trazido foi destruído pelos implacáveis blocos de gelo do mar de Weddell e eles ficaram ao léu no continente gelado. Sem dúvida um abrigo como o nosso traria o alento e a provisão de que esses 28 homens tanto necessitaram.

O desejo de permanecer neste paraíso falava alto, mas a longa caminhada de regresso nos impunha a necessidade de dizer “tchau”. Renovados pelo acolhimento e pela visão que a paisagem antártica nos proporcionou, as subidas e descidas que percorremos no retorno não conseguiram esgotar minhas forças. Do alto das montanhas mantinha os olhos fixos no céu em tons alaranjados – um sol que parecia nunca se pôr.

Eram quase 11 horas da noite quando chegamos à estação brasileira. O astro-rei ainda mostrava sinais de sua presença nos acompanhando nesta aventura. Não sei precisar o horário em que ele se despediu nesta curta noite austral. Estou certa, todavia, de que, em minhas recordações, este será um eterno pôr de sol nas maravilhosas montanhas antárticas.

 

>>> Em vídeo, repórter narra momento registrado em artigo

>>> Conheça o interior do Refúgio 2, apresentado pela repórter

 

Relato da repórter sobre o dia 6 de dezembro de 2017, nos arredores da Estação Antártica Comandante Ferraz

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