OPINIÃO

Carlos Potiara Ramos de Castro é jornalista, professor visitante da Faculdade de Comunicação (FAC) e do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília e do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Graduado em Comunicação Social, mestre em Ciência Política pela Universidade de Paris 8, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e pós-doutor no Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (Ceppac) da Universidade de Brasília. Foi pesquisador visitante do Brazil Center e da Lindon B Johnson School of Public Affairs da Universidade do Texas em Austin, pesquisador do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG) da Organização das Nações Unidas, atuou na Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente com cooperação internacional, sobretudo com as Convenções sobre Diversidade Biológica e do Clima. Suas atividades são nas áreas de ciência política, relações internacionais,comunicação social e meio Ambiente.

Carlos Potiara Ramos de Castro

 

Em 2006 durante a feira de aviação de Fairford, na Inglaterra, foi realizada uma rara demonstração pública de um dos aparelhos mais estratégicos da aeronáutica norte-americana, o bombardeiro B-2 Spirit. Com tecnologia furtiva que o torna invisível aos radares, suas aparições são sempre rodeadas de cuidados para que ele não seja espionado por empresas e governos de outros países. Quando o B-2 fez seu voo de exibição ao público, entretanto, alguns oficiais britânicos discretamente posicionados próximos à pista do aeroporto testaram um radar desenvolvido localmente com novos sensores que conseguiu rastrear perfeitamente o avião. Essa cena foi filmada e foi um dos assuntos do jornal da noite da televisão britânica, onde apareciam os jovens e sorridentes oficiais contando a história.

 

Naturalmente, os Estados Unidos fizeram uma reclamação pública. Mas em realidade não havia uma afronta direta a esse país. Ao contrário, foi uma forma ousada e para eles bem-humorada de não permitir que imaginem que o Reino Unido é uma carta fora do baralho das relações estratégicas mundiais. Pequenas provocações como essas acontecem esporadicamente entre os países que possuem políticas de construção e sustentação de uma influência global, mesmo entre os parceiros históricos.

 

Por trás de uma ação como essa há uma cultura popular legitimadora. Em particular, há uma classe social, que podemos identificar como uma elite local, não necessariamente econômica, mas que cuida dos assuntos de interesse direto de seu país. Bem formada e intelectualizada, essa elite ocupa posições no estado e em organizações privadas cujo acesso se fez pelo mérito. E compartilha valores comuns no que refere ao fortalecimento da sociedade a que pertence e ao posicionamento de seu país enquanto jogador pleno no xadrez internacional.

 

Obviamente, não se trata de uma exclusividade daquele país. França e Alemanha, seus vizinhos, China, Japão, Coreia, Canadá e Rússia, todos possuem um corpo semelhante, que não se legitima socialmente pelo patrimônio, mas pela função que desempenha. Para essa elite, o grande esporte não é o futebol, mas a demonstração de sua capacidade de ação estratégica e de realização de uma leitura de mundo de longo prazo.

 

O Brasil se empenhou nas últimas duas décadas em profissionalizar o Estado e construir carreiras com um perfil que se assemelhasse a esses corpos, com um nível de sucesso mitigado. Entretanto, não há clareza sobre sua real margem de manobra diante do nível de subordinação das instituições deste país a todo tipo de interesses setoriais privados. Em princípio, não temos, portanto, algo que se assemelhe a uma elite no sentido global do termo.

 

O que temos de fato são pessoas ricas. E são elas que definem em larga medida os assuntos estratégicos do país, mesmo sem o instrumental e a legitimidade social necessária. A falta de transparência que acompanha esse quadro e o foco eterno dessas pessoas no aparelhamento da coisa pública reduz o potencial coletivo da sociedade brasileira a uma sombra de si mesmo. Para elas, lidar por exemplo com uma agenda estratégica como a tecnológica cria um antagonismo imediato. Pois aquilo que se desenvolveu nas últimas décadas em tecnologia de ponta deveu-se ao mérito e seriedade de seus criadores e não à promiscuidade com instituições reguladoras.

 

Os momentos de grande crise de legitimidade, como o que vivemos atualmente, podem servir para se erguer os melhores valores que uma sociedade possui. O espetáculo diante dos olhos de todos de uma fratura de classes e da complacência de uma larga parcela de novos e velhos ricos com o ethos deste período político, permite que surja um interessante campo de ativismo popular.

 

E este país, pela própria posição que ocupa, precisa urgentemente domesticar esses segmentos sociais que pouco contribuem com o seu potencial latente. E há um largo espaço de trabalho para introduzir esse novo esporte nacional, que tanto mobilizou os povos na história das sociedades mais bem-sucedidas, que é o jogo da disputa da inteligência e da capacidade técnica nacional com a de outros países e regiões. Esporte sério, mas também lúdico, ele demanda uma sociedade igualitária e dinâmica, mas só pode se consolidar sem a inconveniência dessas pretendidas elites.

 

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Publicado originalmente no portal GGN em 27/9/2017.

 

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