OPINIÃO

Marcelo Jatobá é designer na Secretaria de Comunicação da UnB e atuou como fotógrafo na expedição antártica

Marcelo Jatobá

 

As mãos imersas em águas geladas suportaram temperaturas negativas para registrar fotos subaquáticas. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

 

Poderia a câmera fotográfica mostrar o continente antártico exatamente como ele é? Como se revela a imagem desse continente aos olhos de cada pessoa? Eis alguns dos meus questionamentos sobre fotografar em um continente onde predominam superlativos: o lugar mais frio, mais seco, mais tempestuoso, mais alto e mais inóspito.

 

Tracei como meta a tentativa de capturar com as lentes um pouco dessas impressões. Para cumprir a função, seria necessário não apenas ver, mas sentir a fotografia além dos meus olhos: cada ângulo diferente seria fruto da minha imaginação e sensação. Foi necessário deitar no gelo; fazer silêncio para permitir a aproximação dos animais; esperar a nuvem certa se mover para obter a luz ideal; verificar a postura e empunhadura corretas na neve fofa; adentrar em águas com temperaturas negativas e até mesmo lançar a câmera para o alto em modo de disparo automático para tentar aproximar o registro do que eu gostaria de apresentar como resultado.

Para registrar as travessias de bote, foi necessário me arriscar em posições perigosas. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

 

Além das imagens poéticas, sentidas e construídas, há também, claro, aquelas que apenas cumprem a função de registrar o trivial e ordinário da missão.

 

O momento decisivo do clique na Antártica é rápido. Torna-se quase um processo intuitivo. A grosso modo, eu montava as cenas no visor analógico da câmera com uma ligeireza que me furtava o pensamento. Cabia à natureza dar o tom e o tempo necessários à observação. Diante dessa compreensão, comecei a revelar e entender as fotos que fazia, por vezes poéticas, por vezes apenas no susto. O fato é que me inseria nelas em algum momento, antes ou depois do clique.

 

Nas situações em que era possível me desligar do resto do mundo, sobravam apenas eu e a imensidão. Nos estágios de relaxamento mental e corporal, a poesia entranhava-se na minha imaginação. Assim, tentei representar com fotografias o que a luz e a natureza me ofereciam.

A fim de obter imagens aéreas, permiti a criatividade de lançar a câmera para o alto. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

 

Percebi que a Antártica é ora doce, ora salgada, assim como suas águas. O continente dos superlativos percorre desde as cores mais cinzentas, que retratam uma tormenta, até as cores mais saturadas, que traduzem seus momentos mais serenos e luminosos. É preciso se dar conta de que, nessa imensidão de gelo, o tempo muda em um piscar de olhos. O encantamento da beleza refletida pelo sol é capaz de dar lugar ao dramático preto e branco da escuridão rapidamente. Desta mesma forma nossas mentes funcionavam ali.

 

Talvez minhas palavras não tenham poder de transmitir as mesmas sensações que tive. E devo admitir, caro leitor, que ver a Antártica apenas pelas fotos não é o bastante. O registro fotográfico se encarrega de mostrar apenas o que se vê, mas nunca o que se sente plenamente.

 

Estar no continente antártico me abriu percepções ímpares para além do que se vê. Uma experiência tal e qual é viajar por si e permitir que os olhos e as emoções caminhem sempre juntos, com pés firmes. Experiências como essas são verdadeiramente pessoais e intransferíveis. 

Assim como o pinguim, também me deitei na neve para captar seu melhor ângulo. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

 

Durante os dias de confinamento no navio Almirante Maximiano e na estação brasileira Comandante Ferraz, a meteorologia fazia o papel de nos prender dentro de nossas residências temporárias. Quando as nuvens tratavam de se esconder, davam lugar a um sol que nos arrancava dali e nos permitia contemplar as imagens mais bonitas que nossos olhos já viram.

 

Pedi que colegas me emprestassem assentos ao lado das poucas janelas do Hércules C-130. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

Antes de resumir nossa estadia desta forma, entretanto, é necessário esclarecer que toda sensação tinha seu preço – e essa foi a graça de estar lá. A mudança repentina de humor era nítida a cada saudação matinal que recebíamos. O mesmo lugar, as mesmas pessoas, as mesmas tarefas. A rotina podia ser cruel. 

 

Para quebrar a mesmice, só mesmo a paisagem vista pela janela, no sentido mais amplo da palavra. Por falta de sorte, não recebi essa graça a bordo do navio tio Max. Fiquei alojado em um dos poucos camarotes sem janela e sem luz, elemento essencial para o encantamento de meu ofício. A situação me agoniava como fotógrafo e como alguém que quer ver o mundo girar.

 

A dificuldade de sair desse universo era agravada pelo obstáculo de estar incomunicável, em um lugar cercado pelo mar revolto, com ondas de até cinco metros. Sem a devida cautela, paciência e respeito com os colegas e, principalmente, com a natureza, não seria possível sair de lá.

 

Quando a natureza se mostrou calma, desfrutei de momentos contemplativos, como em Punta Turret. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

Nessa hora é preciso sentir e entender os sinais da natureza, por mais complicado que possa ser promover uma reflexão entre si e o ambiente antártico após vários dias de rotina. Algumas vezes pensei que a natureza, com sua imponência, me avisava que esse espaço deveria permanecer intocável por seres humanos. Assim, me aquietava e aproveitava a viagem, apenas fotografando o que julgava estar ao meu alcance.

 

O continente branco e gelado por vezes nos surpreende de forma menos encantadora do que sugerem suas imagens, mas talvez essas dificuldades tenham me permitido dar mais valor não apenas ao resultado das fotos produzidas, mas também aos momentos marcantes. Como uma recompensa proveniente do próprio esforço de conhecimento do viajante, a natureza antártica se encarrega de vigiar seus passos e te entregar como prêmio um silêncio único, no qual está contido o recado mais importante: Desfrute!

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