OPINIÃO

Cristiano Paixão é professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.

Claudia Paiva Carvalho é mestre e doutoranda em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Integrante dos grupos de pesquisa “Percursos, Fragmentos e Narrativas: história do direito e do constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Professora universitária. Foi integrante da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB

 

Cristiano Paixão* e Claudia Paiva Carvalho**

 

Há 50 anos, no dia 29 de agosto de 1968, a Universidade de Brasília (UnB) foi alvo de uma invasão militar que resultou no espancamento, prisão e tortura de estudantes e funcionários[1]. Sob o pretexto de cumprir mandados de prisão contra estudantes, as forças policiais e militares cercaram a Universidade com viaturas e caminhões de choque. Centenas de soldados invadiram prédios e salas de aulas, com metralhadores, fuzis e bombas de gás lacrimogênio. Um dos grandes alvos da operação foi a Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (FEUB), considerada pela repressão como uma organização subversiva e paramilitar. As forças de segurança espancaram e prenderam o seu presidente, Honestino Guimarães. Cerca de 300 estudantes foram mantidos presos na quadra de basquete da Universidade, que se transformou, segundo o relato dos próprios estudantes, em um campo de concentração. O estudante Waldemar Alves da Silva Filho foi baleado na cabeça e perdeu um olho.

 

Como demonstra o relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB[2], a invasão militar não foi um desvio ou uma ação excessiva, mas, sim, uma operação planejada e calculada. A ação se insere no contexto da escalada repressiva da ditadura ao longo do ano de 1968, que foi marcado por mobilizações estudantis pela qualidade da educação e pela democracia – e que culminaria com a edição do AI-5, em 13 de dezembro daquele ano. A gratuidade do ensino, o incremento do número de vagas nas universidades e o aumento das verbas para a educação superior eram bandeiras defendidas pelo movimento estudantil à época.

 

Um segundo dado reforça o caráter programado da invasão militar do campus em agosto de 1968: a repressão continuada e sistemática contra a UnB. Desde o golpe de abril de 1964, a UnB se tornou alvo constante de violências, arbitrariedades e vigilância do aparato repressivo. A começar pelo afastamento de seus dirigentes no pós-golpe, com destaque para então o reitor Anísio Teixeira, retirado do cargo, a UnB sofreu sucessivas ondas de repressão, expurgos de professores, invasões e ocupações militares, até a nomeação de interventores no cargo de reitor e a estruturação de uma rede repressiva interna, como braço do aparelho de segurança e informações. Essa preocupação permanente de manter a universidade sob controle se justifica tanto pela localização da UnB em Brasília, próxima ao centro do poder, como pelo projeto que a UnB representava.

 

A criação da UnB refletia um projeto de vanguarda para a educação superior, que ecoava os anseios de transformação social do início dos anos 1960. Esse projeto incluía importantes inovações, como a valorização da interdisciplinaridade, a flexibilidade dos currículos, a centralidade da atividade de extensão, a organização dos institutos centrais que promoviam uma formação básica e a convivência entre estudantes de diversos cursos. Darcy Ribeiro, um dos idealizadores da UnB, defendia uma perspectiva de educação humanista, aliada à excelência acadêmica, científica e cultural. Compreendia a universidade como um polo de consciência crítica, que deveria contribuir com o desenvolvimento do país e se manter, ao mesmo tempo, próxima da sociedade e atenta às suas demandas e a seus problemas concretos.

 

Regimes autoritários, no entanto, não toleram conviver com o pensamento crítico. Confirmando essa premissa, a ditadura militar tratou a UnB como um foco de subversão e difundiu a imagem de uma universidade corrompida e desmoralizada. Era preciso desmantelar o projeto original da UnB, e a invasão militar de agosto de 1968 foi mais uma ação integrante deste plano. É bastante simbólico também que, no ano anterior, em abril de 1967, por ocasião dos protestos contra a visita do embaixador norte-americano John Tuthill à universidade, estudantes tenham sofrido violências dentro da biblioteca, de onde foram impedidos de sair. Ou seja, a biblioteca central se tornou parte da cartografia da repressão na UnB, e isso diz muita coisa.

 

50 anos da invasão da UnB, 30 anos da Constituição de 1988. 1968 e 2018. O que essas datas nos dizem? Qual reflexão elas permitem acerca do tempo presente?

 

Elas são indicações importantes de que a democracia é frágil e precária. Se alguém, em 1968, tinha dúvidas sobre a feição autoritária do regime imposto pelo golpe de 1964, o episódio da UnB serviu como prova definitiva. Uma universidade repleta de estudantes e professores, inserida num projeto inovador numa cidade cuja inauguração denotava um projeto de modernização (que não era apenas econômico, mas também cultural, estético, político), é invadida por forças militares com violência e arbitrariedade.

 

Nos tempos atuais, manifestações saudosistas em relação ao regime militar invadem o espaço público. Generais-presidentes são recordados como bons governantes. Torturadores são homenageados. Tudo isso num ambiente democrático. Ocorre, contudo, que por vezes a democracia precisa ativar mecanismos de defesa. Como o caso da Alemanha de Weimar mostrou, uma constituição dotada de um desenho institucional aberto e democrático pode gestar a pior das ditaduras, sem que seja necessário revogar a constituição.

 

Isso projeta um olhar indagador acerca dos 30 anos da Constituição brasileira. Vivemos em meio a uma crise constitucional. Não está claro ainda como será possível superar essa crise, e tampouco sabemos se ela conduzirá ao fim da atual Carta Política[3]. O que sempre permaneceu evidente, e que deve ser lembrado especialmente nos dias de hoje, é que a Constituição de 1988 nasceu sob o signo da redemocratização. As formas de resistência protagonizadas por diversos atores sociais – entre eles o movimento estudantil – tiveram como norte o retorno à democracia por meio do trabalho de uma assembleia constituinte.

 

A Constituinte de 1987/1988 não foi, portanto, o desfecho “natural” de um processo de transição “pacífico”. Muitas lideranças, particularmente aquelas mais próximas ao regime militar, não desejavam a constituinte. Estariam contempladas se fosse realizada uma reforma na Constituição de 1967/1969. As forças políticas que se colocaram contra o regime não permitiram, entretanto, que a solução reformista prevalecesse. Com a intensificação das reivindicações e mobilizações que marcaram o período compreendido entre 1978 e 1988, o sistema político viu-se impelido a convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. Foi uma vitória expressiva de vários setores que souberam se opor à ditadura: movimento estudantil, novo sindicalismo, movimento negro unificado, coletivos de mulheres, plenária pró-participação popular, povos indígenas, representantes da sociedade civil e tantos outros.

 

Na nossa frágil democracia, a luta dos estudantes contra a ditadura – que parece longínqua no tempo – deve ser invocada como uma memória viva, uma lembrança, um alerta de que uma constituição democrática, com todas as suas imperfeições e limitações, foi duramente conquistada. Num momento em que nos deparamos com um autoritarismo oportunista, a manutenção da Constituição de 1988, além de desejável, é também necessária para que se possa lutar por liberdade e igualdade.

 

[1] https://www.unb.br/a-unb/historia/633-invasoes-historicas?menu=423

[2] http://www.comissaoverdade.unb.br/images/docs/Relatorio_Comissao_da_Verdade.pdf

[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/30-anos-crise-e-futuro-da-constituicao-de-1988-03052018

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*Cristiano Paixão é professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB

 

**Claudia Paiva Carvalho é mestre e doutoranda em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Integrante dos grupos de pesquisa “Percursos, Fragmentos e Narrativas: história do direito e do constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Professora universitária. Foi integrante da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB

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