OPINIÃO

Ileno Izídio da Costa¹

 

Vamos falar sobre suicídio nas universidades (e na vida), sem mistificações ou manipulações, mas com cuidado e delicadeza? 

 

Em tempos de sofrimento exacerbado, o suicídio ocupa a cena do drama humano, como se moderno fosse. Mas o termo suicídio – utilizado hoje para referir as mortes voluntárias – já foi tratado sob várias perspectivas, em diversas épocas da história, como pecado, crime, mal, patologia e loucura. Hoje, o suicídio é compreendido, pelos especialistas, como um fenômeno sócio-histórico, e não apenas biológico, psicológico e/ou psiquiátrico. É um assunto de saúde pública, sendo a terceira causa de morte mais comum entre as pessoas de 15 a 44 anos, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Sendo um ato intencional de um sujeito para aniquilar sua própria vida, o ato suicida abrange a ideação suicida, a tentativa de suicídio e o suicídio consumado.

 

Detenho-me aqui ao suicídio como uma das emergências do sofrimento psíquico atual – entendendo o psíquico não apenas como a dimensão psicológica do indivíduo, mas como Edmund Husserl o propugna: o correspondente à subjetividade humana, onde o psicológico, o corporal, o relacional, o valorativo e o espiritual são indissociáveis e se manifestam pela consciência intencional (Husserl, 2001). Entretanto, é importante mencionar que o sofrimento psíquico que pode desencadear este ato não tem, necessariamente, o mesmo significado que transtorno mental, embora a ele também possa estar associado. Conforme Berenchtein Netto (2007), “o sofrimento psíquico é algo da ordem da vivência, algo da ordem da existência, todos nós mais hora ou menos hora, em maior ou em menor intensidade, desenvolvemos sofrimentos psíquicos, o que não é exatamente a mesma coisa no que se refere aos transtornos psiquiátricos”.

 

Estratégias discursivas sobre o suicídio e o sofrimento psíquico que perpetram uma tentativa de normatização, regulação e disciplinarização dos sujeitos, excluem a dimensão psico-sócio-histórica desses processos e as suas singularidades, concorrendo para uma espécie de “anulação ou desqualificação de sua existência”. Berenchtein Netto ainda alerta que, a fim da defesa da não ocorrência do suicídio, o sujeito paga com a sua “não” existência, através de uma medicalização excessiva e correspondente patologização de questões sociais.

 

Não se trata aqui de uma oposição absoluta à utilização de medicamentos – esses, quando corretamente administrados, cumprem um papel importante em nossa sociedade. Contudo, é importante alertar que esse uso ideologizante e mistificador do medicamento apenas encobre os sintomas que se manifestam nos indivíduos, sem tocar em suas profundas raízes sociais e existenciais. A via medicamentosa incide sobre as pessoas, individualmente, desconsiderando que se trata também de um problema social.

 

É urgente que haja uma conscientização de que precisamos lidar também com as causas e determinantes sociais dos suicídios e não apenas silenciar os seus sintomas por meio de uma reificação de doenças e de medicalizações.

 

O fenômeno do suicídio é complexo, multifacetado, multifatorial e multicausal. Não existe uma única explicação e vários são os fatores associados a ele: psicológicos, sociais, ambientais, familiares, culturais, genéticos, de saúde, de sentidos sobre a vida e até mesmo espirituais.

 

Na sociedade pós-moderna, diante do mal-estar presente em nosso tempo, carregado de características como a incerteza frente às coisas, a falta de controle de um tempo que passa depressa demais, do consumismo, da sociedade narcisista, da necessidade de que o homem busque saída para o seu sentimento de desamparo, das “relações líquidas” e outras mais, Cassorla (2004) nos diz que o suicídio constitui-se como o máximo da manifestação autodestrutiva do sujeito, que confirma o nosso fracasso na vida pós-moderna, onde não conseguimos aceitar o nosso lugar na sociedade, desistindo literalmente de viver.

 

Birman (2003) acredita ser o suicídio uma saída possível para o sentimento de desamparo, considerado como o mal-estar típico da pós-modernidade. Este comportamento tem grande impacto e é, sem dúvida, uma solução definitiva para problemas temporários. O que tem se observado é que cada vez mais as pessoas têm buscado no suicídio uma alternativa para dar um fim à sua dor (Fensterseifer & Werlang, 2006).

 

Assim, em toda e qualquer resposta simplista sobre suicídios, há uma grande possibilidade de erro. Por outro lado, não falar sobre suicídio não diminuiu seus índices, pelo contrário, eles têm aumentado, o que nos leva a uma mudança na mentalidade de que o suicídio precisa ser ocultado. Por si sós, os dados epidemiológicos servem como alerta e fomentam programas de intervenção, porém os índices de suicídio nos convocam a prestar atenção às pessoas ao nosso redor. Junto com programas de prevenção, temos que desenvolver, em nosso meio, também programas de posvenção (termo ainda pouco conhecido no Brasil), que têm como objetivo principal cuidar do sofrimento de pessoas com ideação e tentativa de suicídio e familiares enlutados, oferecendo acolhimento, cuidado e psicoterapia. Essas pessoas necessitam de escuta, apoio, acolhimento e cuidados em longo prazo, não querem saber de números, estatísticas ou porcentagens. Precisam falar de seu sofrimento existencial.

 

Pessoas afetadas pelo suicídio precisam de particularização, singularidade, respeito pela sua história que tem um início e que ainda não foi finalizada, porém sem tirá-las de seus contextos e historicidade. Pessoas com ideação, tentativa de suicídio e familiares enlutados demandam atendimento de qualidade com profissionais de saúde e da área psicossocial capacitados que possam acolher o sofrimento humano, cujo objetivo principal não deve ser apenas evitar o suicídio a todo custo. A atenção voltada unicamente a impedir o suicídio, por exemplo, pode apenas restringir o sujeito, restringindo sua autonomia e liberdade.

 

Mas por que culpabilizar as universidades? Ou como as universidades contribuem com este sofrimento? Como espero ter demonstrado, o tema ou o fenômeno não pode – e nem deve – ser atribuído a apenas um ator ou uma causa, pois, se assim o fazemos, estamos ou mistificando ou manipulando ou, pior ainda, minimizando a complexidade do fenômeno e as dores inerentes a esta vivência genuinamente dolorosa e humana. Então, como podemos localizar apenas um culpado pela manifestação de querer deixar de existir? E por que as universidades têm sido elegidas como esses bode-expiatórios potenciais?

 

Infelizmente, as opções de cuidados contínuos em hospitais, Centros de Atenção Psicossocial e nas Unidades Básicas de Saúde ainda são precárias se considerarmos que o fenômeno tem dimensões e potenciais epidêmicos (podemos afirmar que o suicídio é uma “epidemia silenciosa” que, nos tempos atuais, tem deixado de ser invisível). Não esqueçamos que a responsabilidade primeira e essencial sobre os agravos de nossa saúde (a mental aqui incluída) é do Estado, conforme preceitua o art. 196 da Constituição Federal: “A saúde é um direito de todos e um dever do Estado”.

 

Cabe aqui destacar o Centro de Valorização da Vida (CVV) que realiza de maneira exemplar o trabalho de atendimento em crise e o acolhimento. Porém, é preciso diferenciar acolhimento em crise, realizado pelo Centro de Valorização da Vida, que é muito importante, por ser, em muitos casos, o primeiro passo para o atendimento de pessoas com ideação ou tentativa de suicídio, de um atendimento especializado como, por exemplo, o atendimento psicoterápico, medicamentoso ou psicossocial. Em muitos casos é necessário o atendimento psicossocial especializado (aqui incluindo a assistência social, a psicoterapia e a terapia medicamentosa, entre outras) para lidar com a difícil tarefa de compreender emoções intensas, a ambivalência entre o desejo de viver e morrer, ampliar a visão estreita que considera a morte como única solução para o sofrimento, em seus contextos e desafios.

 

É preciso alertar que os sinais que figuram tão claros nas cartilhas, que tanto se tornam profusas neste mês de setembro, não se revelam tão claros na realidade. Assim, além da prevenção do suicídio, precisamos também falar daqueles que buscam consumar o ato suicida, de forma impulsiva ou planejada, e que não morreram e dos familiares que os acompanham, também desesperados, sem saber o que fazer – a quem, na maioria das vezes, a saga midiática sobre o suicídio desrespeita, machuca ou mesmo continua violentando. Observamos poucas referências sobre a questão dos cuidados nos documentos da OMS, nas políticas públicas do Ministério da Saúde e nas cartilhas apresentadas.

 

Neste particular, espero que neste Setembro Amarelo possamos também enfocar os cuidados a pessoas em situação de sofrimento e dor. No caso da UnB (e de outras universidades), para não sucumbirmos às responsabilizações manipulatórias de pessoas e ações midiáticas (jornais, mídias sociais etc.), que não contribuem para a solução, mas tão somente para uma exposição perversa de todas as colorações, precisamos abrir um debate (com base em estudos, pesquisas, levantamentos, fóruns e socialização de conhecimentos) sobre as nossas relações rigidificadas, verticalizadas, endurecidas, eivadas de assédio moral e sexual, violências verbais e psicológicas (incluindo bullying, trotes violentos, discriminação das diferenças, competitividades, vaidades e excelências, padrões produtivistas, falta de cuidado nas relações e convivências, exclusivismo do império do conhecimento versus a vida que flui etc.), que, não sendo a causa, contribuem para o caldo existencial do sofrimento de muitos.

 

Para finalizar, sendo propositivo, sugiro à UnB e demais universidades:

  1. Desenvolver estratégias de promoção de qualidade de vida, de educação, de proteção e de recuperação da saúde e prevenção de danos, em todas os ambientes e instituições;
  2. Desenvolver estratégias de informação, de comunicação e sensibilização da sociedade de que o suicídio é um problema de saúde pública que pode ser prevenido;
  3. Organizar linha de cuidados integrais (promoção, prevenção, tratamento e recuperação) em todos os níveis de atenção, garantindo o acesso às diferentes modalidades terapêuticas (papel primordial do Estado de Atenção à Saúde);
  4. Identificar a prevalência dos determinantes e condicionantes do suicídio e tentativas, assim como os fatores protetores e o desenvolvimento de ações intersetoriais de responsabilidade pública, sem excluir a responsabilidade de toda a sociedade;
  5. Fomentar e executar projetos estratégicos fundamentados em estudos de custo-efetividade, eficácia e qualidade, bem como em processos de organização da rede de atenção e intervenções nos casos de tentativas de suicídio;
  6. Contribuir para o desenvolvimento de métodos de coleta e análise de dados, permitindo a qualificação da gestão, a disseminação das informações e dos conhecimentos;
  7. Promover intercâmbio entre os Sistema de Informações do SUS e outros sistemas de informações setoriais afins, implementando e aperfeiçoando permanentemente a produção de dados e garantindo a democratização das informações;
  8. Promover a Educação Permanente dos profissionais de saúde das unidades de atenção básica, inclusive do PSF, dos serviços de Saúde Mental, das unidades de urgência e emergência, de acordo com os princípios da integralidade e humanização.

 

Por fim, fica o pedido e a provocação: vamos falar de suicídio (e saúde mental) sem mistificações ou manipulações, não só nas universidades, mas na vida, e com cuidado e delicadeza?

 

Referências

Berenchtein Netto, N. (2007). Suicídio: uma análise psicossocial a partir do materialismo histórico dialético. Dissertação de mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia social da PUC/SP, São Paulo.

Birman, J. (2003). Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Cassorla, R. M. S. (2004). Comportamento suicida. In B. G. Werlang, & N. J. Botega. Suicídio e autodestruição humana. (pp. 21-33). Porto Alegre: Artmed.

Fensterseifer, L., & Werlang, B. S. G. (2006). Comportamentos autodestrutivos, subprodutos da pós-modernidade? Psicol. Argum., outubro/dezembro, Curitiba 24 (47), 35-44.

Husserl, E. (2001). Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. Porto: Rés.

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¹Coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Atendimentos em Saúde Mental e Drogas (NESPAD) do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

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