Em um Brasil onde pretos e pardos representam 54,9% da população nacional, a presença reduzida de negros e negras em espaços como as universidades sinaliza a existência de um racismo estrutural, resquício do regime escravocrata que marcou a história do país. Em fins da década de 1990, apenas 1,8% dos jovens negros frequentavam ou haviam concluído o ensino superior. O cenário tem mudado desde a implementação de políticas de ações afirmativas em instituições de ensino superior, que têm contribuído para tornar o ambiente acadêmico mais plural e democrático.
Há 15 anos, a UnB tornou-se a primeira universidade federal a adotar cotas raciais em seus processos seletivos de ingresso na graduação. Aprovado no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) no dia 6 de junho de 2003, o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial estabelecia que 20% das vagas do vestibular seriam destinadas a candidatos negros, além de prever a disponibilização de vagas para indígenas de acordo com demanda específica. A medida entrou em vigência no ano seguinte.
Instrumento de inclusão social e de reparação de assimetrias históricas, a política de cotas mira a redução do racismo e das distorções socioeconômicas dele resultantes, mas sobretudo, a garantia de acesso ao ensino superior e à qualificação profissional pela população negra. “A UnB sempre foi uma universidade à frente de seu tempo, e as cotas são mais um exemplo de nosso protagonismo. Com as ações afirmativas, democratizamos o acesso à Universidade e reiteramos o compromisso com a superação das desigualdades e com a valorização da diversidade”, reforça a reitora Márcia Abrahão.
Os desafios para aprovar a proposta foram grandes. Precursores da iniciativa na UnB, a emérita Rita Segato e o professor José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia (DAN), enfrentaram críticas e resistência de alguns segmentos da comunidade acadêmica. “Eu não tinha noção da extensão do racismo no Brasil e no mundo acadêmico até fazermos a proposta. O que enxerguei é que a elite branca defendeu sua redoma, o viveiro onde ela se reproduz”, relata Rita Segato, à época também vinculada ao DAN.
Entre os argumentos contrários, constavam que as cotas poderiam acirrar as diferenças raciais na Universidade, provocar queda no nível acadêmico, além de não priorizarem exclusivamente o recorte socioeconômico. A polarização do debate, no entanto, não desmobilizou os docentes. Foi justamente um caso de racismo, ocorrido com um doutorando em Antropologia da UnB, um dos motivos para que a dupla travasse essa luta. “Colocamos as cotas para negros como uma política de combate ao racismo, e justamente por isso o modelo pioneiro da Universidade de Brasília foi de cotas raciais irrestritas”, justifica José Jorge de Carvalho.
VANGUARDA – Experiências pioneiras como a da UnB inspiraram a criação, em 2014, da Lei de Cotas para o Ensino Superior, que instaura a reserva de vagas para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas, segundo critérios de renda. A implementação da medida trouxe às universidades uma nova estratégia de inclusão, favorecendo o acesso de estudantes negros em vulnerabilidade socioeconômica. Com a validação da lei, a UnB optou por manter sua política institucional de cotas raciais, com a redução do percentual de vagas reservadas para 5% e a extensão ao Programa de Avaliação Seriada (PAS).
Os resultados desses avanços tornaram-se perceptíveis nos próprios corredores e salas de aula da UnB. Em 2017, o número de ingressantes que se autodeclaravam negros atingiu os 33,53%, segundo levantamento do Decanato de Planejamento, Orçamento e Avaliação Institucional (DPO). Além do aumento de novos estudantes, verificou-se a ampliação do quantitativo de graduados negros após a política (confira no gráfico abaixo). O panorama nacional também é positivo: em 2016, 30% dos jovens negros estavam matriculados no ensino superior, segundo o último censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Para o decano de Assuntos Comunitários da UnB, André Reis, as iniciativas são apenas os primeiros passos para transformar a universidade em um ambiente mais inclusivo. “As políticas de cotas trazem justiça para um grupo que por muito tempo não teve espaço nessas instituições. No entanto, o que precisamos pensar agora é em transformá-la em ações de permanência para que elas não promovam uma exclusão por dentro”, afirma o decano.
Rita Segato e José Jorge consideram que há muito o que comemorar, mas também enxergam desafios para a consolidação da política, como a coibição das fraudes, a extensão das cotas para a pós-graduação e na seleção de docentes e a inclusão de saberes da população negra nos conteúdos acadêmicos – temas que já estão em debate na Universidade. Em entrevista à Secretaria de Comunicação, os professores mencionam os avanços e entraves após 15 anos da aprovação das cotas raciais na UnB.
Como a discussão sobre as cotas ganhou projeção no Brasil?
Rita Segato: É uma luta antiga. Essa luta contra o racismo se deu desde o fim da escravidão e foi levada à frente pelas organizações negras. No momento das cotas, ela deixa de ser exclusiva dos negros e se transforma em uma luta nacional, da sociedade brasileira. Aconteceu então que nós, pessoas não-negras, percebemos que, se o problema não era resolvido no Brasil, a dificuldade da sociedade brasileira de se enxergar não seria superada. Existe um ponto cego da auto-representação do Brasil com relação ao racismo, e esse foi um pequeno passo dado pela sociedade, envolvendo negros e brancos, para avançar sobre essa cegueira.
O que motivou a apresentação da proposta de um sistema de cotas para a UnB?
José Jorge: A proposta foi uma reação política à discriminação racial sofrida, em 1998, por um estudante do doutorado em Antropologia, então meu orientando. Primeiro negro a ingressar no programa em 20 anos, Arivaldo Lima Alves foi reprovado em uma disciplina obrigatória em seu semestre inicial no curso, em circunstâncias inaceitáveis, dada a forma como a situação foi tratada pelo coletivo docente. No auge do caso, que se arrastou ao longo de dois anos, iniciamos, em dezembro de 1999, o debate pela implantação de cotas para negros e indígenas na UnB. Naquela época, realizei um censo de identificação dos professores negros na UnB: de 1.500, apenas 15 – ou seja, 1% – eram negros. Esse duplo escândalo, de racismo institucional e extrema exclusão racial, foi decisivo como argumento em defesa das cotas raciais.
E o processo de implementação, como se deu?
Rita Segato: Depois de lutarmos para conseguir na UnB a aprovação pioneira das cotas, e de estudar por anos como se deveria implementar a política e por quais órgãos deveria ser acompanhada, fomos completamente afastados da aplicação da medida. Inevitavelmente, cometeram-se erros na prática, o que ocasionou que, apesar da UnB ter sido pioneira, outras universidades brasileiras conseguiram debater e implantar a política de forma mais adequada.
Quais seriam essas limitações no modelo adotado? O que pode ser melhorado?
Rita Segato: Quando fizemos a proposta, pensamos em monitorar a implementação. Considerávamos muito mais sadio e seguro que os alunos que ingressassem pelo sistema soubessem que haveria uma avaliação da forma de execução, observando a lisura da utilização da política. Esse monitoramento seria feito a cada ano, para melhorar o funcionamento da seleção e do processo de cumprimento da política. Previmos também uma comissão psicopedagógica para apoiar as pessoas com dificuldades. Por último, haveria uma ouvidoria especializada, que seria concebida como caixa de ressonância aos problemas que a comunidade acadêmica sofre de discriminação e exclusão na universidade. Esses órgãos constavam no projeto inicial, mas não foram implantados.
À época, a concepção da política de ações afirmativas suscitou na UnB debates por grupos contrários e favoráveis à medida. Por que o assunto foi e ainda é tão polêmico?
José Jorge: O principal dos motivos é porque coloca o racismo no centro do debate sobre a desigualdade racial no Brasil e no mundo acadêmico. A admissão do racismo no meio universitário desafia uma falsa narrativa que ainda sustenta a nossa imagem de nação e que foi sempre promovida pela nossa academia branca: a democracia racial e as supostas vantagens da nossa mestiçagem. Essa ideologia permite aos brancos fugir da responsabilidade histórica pela escravidão e pela desigualdade racial e, ainda, rejeitar as políticas de reparação, como as cotas, com o argumento de que não existem raças e que somos todos mestiços. Colocamos as cotas para negros como uma política de combate ao racismo e, justamente por isso, o modelo pioneiro da UnB foi de cotas raciais irrestritas.
Rita Segato: A universidade, especialmente a pública, sempre foi a redoma da reprodução das elites. Democratizar racialmente esse espaço é intervir nessa redoma e dar acesso ao corredor que deve ser atravessado por todos aqueles que se transformarão nos operadores do Estado, que terão em suas mãos as decisões sobre o destino dos recursos da nação. Além do mais, é dizer ao mundo que a universidade brasileira é racista, que o problema racial existe no país.
Como avalia o impacto dessa política em âmbito nacional? E na UnB, houve real avanço no processo de democratização e de inclusão no espaço acadêmico?
Rita Segato: O grande mérito do projeto das cotas é uma mudança de hábito, do olhar. A proposta é, acima de tudo, pedagógica, pois ela consegue transformar as nossas expectativas a respeito de onde poderá ser encontrado “o signo do negro” na vida brasileira. Esse signo foi marcando presença numa série de cenários onde antes não circulava. Chamo isso de pedagógico pois muda o nosso olhar e as nossas expectativas a respeito dos cenários onde a pessoa negra “pertence”. Ela agora certamente passou a pertencer à universidade, sua presença passou a ser habitual nessa cena. E essa mudança pedagógica começamos a fazer a partir da UnB. Essa é, sem dúvida, uma grande vitória.
Com a aplicação da Lei de Cotas para o Ensino Superior, em 2014, a UnB passou a contar com duas políticas afirmativas para ingresso na graduação. A combinação dessas medidas ampliou as possibilidades de ingresso de negros na Universidade?
José Jorge: Apesar de seu inegável impacto, a Lei de Cotas para o Ensino Superior contém falhas em sua formulação, levando inclusive a retrocessos diante de modelos de cotas raciais como o da UnB. Escrevi um longo ensaio analítico e crítico em meu livro A Política de Cotas no Ensino Superior, em que defendo a necessidade de se manter, separada e articuladamente, as cotas raciais, para baixa renda e para escola pública. É preciso que a lei reflita a complexidade das dimensões de discriminação e desigualdade, e não subsuma a pauta, mais que justa, das cotas para negros à condição de escola pública e de baixa renda. Espero ser possível, no futuro, revisar a lei para otimizar os seus efeitos.
A política está realmente consolidada ou ainda há resistência quanto à sua continuidade?
José Jorge: Resistência ainda existe, contudo, temos muito que comemorar pelos 15 anos de cotas na UnB. A primeira dimensão do Plano de Metas, que propôs as cotas na graduação, de fato se cumpriu. Mesmo com todas as resistências, um olhar retrospectivo indica que o caminho que tomamos em 2003 levou a uma mudança radical no perfil racista, elitista, excludente e intelectualmente eurocêntrico e colonizado que caracterizava, naquele momento, não apenas a UnB, mas todas as universidades. Hoje lutamos para assegurar a presença de negros, indígenas e quilombolas na graduação, na pós, e na docência. Internamente, estamos apresentando à Câmara de Pós-Graduação uma proposta de cotas para negros, indígenas e quilombolas em todos os programas de pós-graduação da UnB. Mais adiante, precisaremos atacar outra dimensão, que são as cotas na docência, pois continuamos mantendo uma desigualdade racial na docência que não condiz com a trajetória de pioneirismo alcançada com as cotas na graduação.