Os primórdios da criação da nova capital do Brasil, ao final da década de 1950, trazem consigo um debate acerca da fundação das cidades satélites dentro do planejamento urbano: foram ou não premeditadas pelo governo? A princípio, acreditava-se que eram “subprodutos indesejáveis da construção da cidade modernista”.
Entretanto, no artigo Remoção de favela e planejamento urbano em Brasília das décadas de 1950 a 1970, da professora Maria Fernanda Derntl (FAU/UnB), uma resposta surgiu a partir de fontes em arquivo público e inéditas obtidas nos Estados Unidos (EUA): houve planejamento público para que houvesse cidades feitas apenas para trabalhadores, construídas como dormitórios localizados entre 12 e 40 km do Plano Piloto.
Em 21 de abril, comemorou-se o aniversário de 65 anos de Brasília e 63 anos da UnB. Para a professora, “é uma boa oportunidade para repensarmos Brasília como um todo, além do Plano Piloto”.
“A história de Brasília nos mostra, nesse período estudado, um certo modo de intervir nesses espaços irregulares e que levou ao estabelecimento de uma política de urbanização de Brasília”, afirmou Derntl.
Com a migração para construção da nova capital, houve a formação de favelas – conjuntos habitacionais sem estrutura básica de funcionamento – nos arredores de Brasília. A primeira documentação oficial da existência de favelas em Brasília foi em 1958.
A Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) estruturou a realocação destes migrantes para os dormitórios nos subúrbios e delimitou a faixa sanitária, correspondente ao lago Paranoá, para evitar a poluição da área.
As favelas foram ponto de pensamento de Lucio Costa, responsável pelo planejamento urbano da cidade. Segundo o artigo, ele afirmou que “favelas deveriam ser evitadas e que a Novacap deveria prover acomodações adequadas e acessíveis a toda população”. Costa imaginou as satélites como “racionalmente projetadas e arquitetonicamente definidas”, a serem construídas quando o Plano Piloto alcançasse a população limite de 500 a 700 mil habitantes.
VILA AMAURY – Em 1959, a favela Vila Amaury ocupava a faixa sanitária. O local cresceu a partir da iniciativa de Amaury de Almeida, funcionário da Novacap, e era utilizada temporariamente para reunir favelas ao redor de Brasília antes da construção da área que seria inundada para construção do lago.
O plano de realocação desta favela foi a construção diária de, ao menos, dez casas em Taguatinga e 20 em Sobradinho. Segundo o plano, haveria arruamentos, bebedouros a cada 100 m, iluminação pública e um gerador de energia elétrica.
De acordo com a pesquisadora, os operários não questionavam o modelo de ocupação, mas percebiam as dificuldades: “A população morava muito longe. A expansão da rede de infraestrutura, de saneamento de água era algo muito custoso”.
“Viam que essa maneira de tratar as favelas a partir da erradicação e remoção acabava levando as pessoas para a cidade satélite ou para lugares em que não conseguiam pagar os lotes e isso gerava novas favelas”, complementou.
ESTADOS UNIDOS – Em 2024, a professora Derntl viajou com o grupo de pesquisa Capital e Periferia – que estuda a história de Brasília para além do Plano Piloto – para os Estados Unidos e teve acesso a documentações inéditas a respeito da ”visão da embaixada americana sobre as favelas em Brasília logo após o golpe de 1964”.
De acordo com os documentos, a preocupação da Embaixada dos Estados Unidos era a ocupação irregular na Vila Planalto, localizada em uma área entre o palácio presidencial e a Esplanada dos Ministérios. Conforme relatório da embaixada estadunidense, entre 6 a 10 mil famílias se voluntariaram para se retirar do local, o que demonstrou “pressão intensa dos programas de remoção”.
ATUALIDADE – Segundo Derntl, estas políticas públicas “foram formuladas e empregadas historicamente como modo de preservar o Plano Piloto. Elas acabaram contribuindo para definir as feições da Brasília metropolitana que nós temos hoje”.
Em 2023, o Sol Nascente foi considerado a maior favela do Brasil. A partir disso, nota-se semelhança entre a negação de favelas na construção de Brasília e na atualidade da capital. “Quando saiu a reportagem sobre a localidade ser uma das maiores favelas do Brasil, uma das respostas das autoridades foi logo falar ‘não, aquilo não é uma favela, já está se regularizado e vai ser uma região administrativa’”, explicou Derntl.
O planejamento urbano de Brasília levou a um debate complexo que não pode ser descrito como um centro rico e periferia pobre, pois há “condomínios de pessoas ricas que também são distantes. Por outro lado, temos cidades satélites que se consolidaram em uma vida urbana econômica e dinâmica. A ocupação se tornou mais complexa, mas Brasília ainda subsiste como uma capital de muita disparidade socioespacial”, pontuou Derntl.
FUTURO – Entre os trabalhos do grupo de pesquisa Capital e Periferia, que tem 11 integrantes, está o pós-doutorado de Daniela Barbosa, acerca da relação entre favelas e a documentação patrimonial em Brasília, além de pesquisa sobre o Sol Nascente.
Em setembro, o grupo Capital e Periferia realizará exposição de seus materiais na Galeria Risofloras, em Ceilândia, junto ao Programa Jovem de Expressão. Segundo Derntl, “é para falar da história das favelas em Brasília, dos processos de remoção e erradicação da memória que algumas famílias têm deste processo, e também dos artistas contemporâneos que fazem obras que aludem a esses processos de remoção”.
A pesquisa que resultou no artigo Remoção de favela e planejamento urbano em Brasília das décadas de 1950 a 1970 teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), uma bolsa de doutorado da Comissão FulBright e da Universidade de Georgetown, Washington, EUA. Além disso, o Decanato de Pesquisa e Inovação (DPI/UnB) da UnB proveu apoio significativo para que a publicação fosse de acesso aberto.
*estagiária de Jornalismo na Secom/UnB
