A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2019 como o Ano Internacional das Línguas Indígenas. Estima-se que em todo o mundo existam entre seis e sete mil idiomas desses povos atualmente e o Brasil é o país com maior diversidade linguística do planeta.
Nesse contexto, a Universidade de Brasília sedia o II Congresso Internacional sobre Línguas Indígenas e Minorizadas (II Cirlin). A programação vai até o dia 6 de outubro. A abertura aconteceu na tarde desta terça-feira (1º) e reuniu cerca de 200 participantes, entre pesquisadores, ativistas e indígenas da América Latina.
“A ideia do evento é envolver a geração indígena atual, que está se formando para ser protagonista no ensino e no fortalecimento de suas respectivas línguas nos seios de suas comunidades”, informou a organizadora desta edição, a coordenadora do Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas (Lalli) do Instituto de Letras (IL), Ana Suelly Cabral.
Também está sendo realizado o I Encontro sobre Diversidade Linguística Indígena: trocas de experiências e estratégias de salvaguarda. Por isso, a organização mobilizou a vinda de dezenas de indígenas de diferentes regiões do país, com o apoio de universidades e instituições de ensino e pesquisa.
Para exemplificar parte da diversidade linguística, cada um desses indígenas fez uma apresentação em sua língua no palco do anfiteatro 9 do Instituto Central de Ciências (ICC), onde o evento está sendo realizado.
Do povo huni kui do Acre, Joaquim Paula de Lima foi o primeiro doutor indígena formado pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL) da UnB. Alfabetizado na década de 1980, ele atualmente faz pós-doutorado na Universidade Federal do Acre.
“É preciso defender nosso direito, nossa língua, nossa cultura e nosso povo”, afirmou. Para ele, eventos como o Cirlin e a atuação de grupos de pesquisa sobre a temática são muito importantes para a preservação da cultura indígena no país.
A professora Ana Suelly Cabral lembrou que a UnB e o IL têm, desde o princípio, o compromisso social com a causa desses povos, tendo sido a primeira universidade a ofertar o vestibular indígena. “O Brasil tem mais de 60 povos isolados vivendo nas florestas; [nosso desejo é] que eles se conservem e resistam para preservar o que têm de mais precioso: sua língua, cultura e terra.”
IDENTIDADE INDÍGENA – Primeira mulher indígena eleita deputada federal, Joênia Wapichana também fez questão de se apresentar em sua língua materna e informou que o Brasil tinha mais de mil variantes indígenas, mas atualmente só restam 274, segundo registros oficiais.
“O Brasil é território indígena. Resistimos há 519 anos; éramos milhões e hoje somos apenas 800 mil”, destacou. Em sua ótica, mais do que revitalização, é preciso reafirmação e revalorização do verdadeiro idioma brasileiro, o indígena.
Para Joênia Wapichana, natural do povo que habita a região amazônica do estado de Roraima, o momento é importante, pois a população indígena está entre as mais vulneráveis do planeta, sobretudo da América do Sul e do Brasil. “É preciso mostrar nossa vasta riqueza e o conhecimento que se mantém vivo de geração a geração para garantir nossos espaços e defender os direitos de todos que dependem de decisões responsáveis e compromissadas com o futuro do planeta.”
Doutoranda do PPGL, Nupiã Tupinambá, ou Núbia Batista da Silva (nome social), é natural do estado da Bahia e disse que o evento tem significado especial para ela, pois hoje as gerações mais novas só conhecem as expressões mais comuns de sua língua. Apenas os mais antigos são de fato falantes.
“A nossa língua é nossa força espiritual e representa a ligação entre o ritual e a aldeia. Infelizmente a política linguística da educação brasileira não engloba as línguas dos povos tradicionais”, lamentou. Nupiã Tupinambá considera que a língua é viva e tem história, sendo fundamental sensibilizar as pessoas e mostrar a diversidade cultural.
OUTRAS VOZES – Além da coordenadora do Lalli e da deputada federal, também participaram da solenidade de abertura representantes de diferentes órgãos e instituições: o vice-reitor da UnB, Enrique Huelva, o embaixador da Nova Zelândia no Brasil, Chris Langley, a representante da Unesco do Brasil, Virginia Casado, o representante do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Marcos Vinicius Garcia, o subsecretário do Patrimônio Cultural do DF, Cristian Brayner, e a diretora do IL, Rozana Naves.
Para a diretora do IL, a iniciativa é um belo exemplo de integração entre os saberes interdisciplinares e experienciados. “Isso foi sonhado e construído no Lalli desde o professor e doutor honoris causa Aryon Dall'Igna Rodrigues, que defendia que os índios não fossem apenas objetos de pesquisa, mas sujeitos do desenvolvimento científico de suas línguas e culturas.”
A representante da Unesco no Brasil, Virginia Casado, mencionou o projeto Atlas das Línguas em Perigo e ressaltou a necessidade de articulação interinstitucional. “Na área de cultura, estabelecemos protocolos de ação com diversos outros órgãos, como a Funai e o Museu do Índio.”
Abordando a experiência da Nova Zelândia na valorização do povo Maori, o embaixador Chris Langley sustentou que a língua é “a porta de entrada para a cultura e história de um povo”. Ele assegurou que houve em seu país reconhecimento por parte do governo para a valorização da identidade nacional nativa, mas que somente a legislação não é suficiente: “há de se ter o compromisso de trabalhar ativamente para as gerações futuras”.
Subsecretário de patrimônio cultural do Distrito Federal, Cristian Brayner lembrou que Brasília tem 32 etnias indígenas, mas apenas um museu. Em sua ótica, há um equívoco na nomenclatura Memorial dos Povos Indígenas. A expectativa de sua gestão é propor uma mudança no nome do espaço.
“Quando se evoca a memória está retratando algo que não existe mais, apenas rastros, mas a atuação indígena no país não está no pretérito, os indígenas estão vivos, atuam e continuam produzindo cultura e linguagens.” Como Brasília comemora 60 anos em 2020, ele pediu aos presentes para visitarem os espaços de cultura e colaborarem com a celebração da capital, que tem importância regional e referência internacional.
“Vamos protagonizar uma pauta cultural e mostrar não apenas a história dos candangos que chegaram no início da construção da cidade, mas os indígenas que aqui estavam e muitas vezes são esquecidos, invisibilizados”, propôs.
De ascendência espanhola, o vice-reitor Enrique Huelva relatou vivência particular, citando época em que o uso da língua catalã foi proibido e o idioma era falado apenas no núcleo familiar. “Nós tínhamos aula da língua de forma camuflada, em aulas de matemática”, contou. Referenciando Mia Couto, que esteve na Universidade recentemente, ele ressaltou que “a língua estrutura a alma, sendo um dos direitos mais fundamentais que temos como seres humanos”.
SOBRE O CIRLIN – Realizado pela primeira vez em Barcelona, na Espanha, em 2017, o Congresso Internacional sobre Línguas Indígenas e Minorizadas conta com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), bem como de diversas instituições de pesquisa e cultura.
Ao contemplar iniciativas e práticas de revitalização de línguas indígenas de diferentes partes do mundo, o objetivo do evento é dar visibilidade às ações desenvolvidas em prol da vida e fortalecimento das línguas indígenas em geral.
Ao todo, mais de 200 pessoas se inscreveram e há participantes de diferentes países, como Chile, Bolívia, Peru, Canadá, Nova Zelândia, Estados Unidos e Espanha. O congresso conta com o apoio da Embaixada da Nova Zelândia.