OPINIÃO

Lourdes Maria Bandeira é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher - NEPEM/UnB. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Sociologia pela UnB, doutora em Antropologia - Université René Descartes e pós-doutora na área de Sociologia do Conflito na École des Hautes Études en Sciences Sociales-EHESS. Atua nos temas: conflito, violência nas relações de gênero, cidadania, mulheres, feminismo e políticas públicas. Ex-secretária de Planejamento e Gestão e ex-secretária adjunta da Secretaria de Políticas para Mulheres-SPM/PR.

Lourdes M. Bandeira

 

Em 8 de março de 1857, em Nova York, costureiras saíram às ruas para se manifestarem contra as condições de exploração no trabalho. Exigiam a redução da jornada de trabalho de 16 para 10 horas diárias e salários iguais aos trabalhadores homens[2].

 

Em 1910, Clara Zetkin, em Copenhague, durante a Conferência da Internacional de Mulheres, propôs que o dia 8 de março se tornasse a Jornada Internacional das Mulheres em homenagem às operárias americanas, mas também extensivo a todas as trabalhadoras, para que em cada ano tivesse um dia dedicado às suas lutas. Nascia, portanto, há mais de cem anos, o Dia Internacional da Mulher no mundo.

 

Há outras leituras para o estabelecimento deste dia, no entanto, o que verdadeiramente importa é recuperar seu significado, no qual se engajaram milhares de mulheres de diversos países e regiões do globo, de todas as condições sociais, convicções políticas, situações religiosas, raciais, étnicas, entre outras. Se o direito ao voto foi a reivindicação central que as mobilizou nas primeiras décadas do século XX, foi na segunda metade que se intensificou o debate sobre o significado das relações de opressão misógina sobre as mulheres, das distintas formas de organização familiar e da exploração nas relações de trabalho em todas as sociedades e formações históricas.

 

Nessa direção, a predominância do sistema capitalista, ao radicalizar a divisão entre público e privado distanciando as esferas da produção e da reprodução, acabou por desconhecer a injusta divisão sexual do trabalho, caracterizada pelo enorme volume de trabalho realizado pelas mulheres: “... a divisão sexual do trabalho tida como estratégia integrante da exploração capitalista e como mecanismo que revalida as relações de poder e opressão entre mulheres e homens (...) e das razões da permanência da chocante desigualdade gerada entre mulheres e homens ...”[3].

 

A propósito, segundo os estudos divulgados pela Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), com dados de 46 países, o salário médio de uma mulher brasileira com educação superior representa apenas 62% do de um homem com a mesma escolaridade. No Brasil ainda, 72% de homens que concluíram a universidade ganham mais de duas vezes a média de renda nacional. Entre as mulheres, essa taxa diminui para 52%[4].

 

Receber o mesmo salário que os homens em condições similares de igualdade faz parte da condição de direito humano das mulheres. É um requisito inevitável para que se alcance sua autonomia econômica e para avançar na equidade de gêneros – disse a Secretária Executiva da CEPAL, Alicia Bárcena, no contexto do Dia Internacional da Mulher[5].

 

Como se não bastassem tais diferenças absurdas em relação aos salários das mulheres e dos homens, quando se dirige o olhar específico às mulheres negras a situação é completamente alarmante. Pois, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), produzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estudo analisou dados da inserção da mulher negra no mercado, no período de 2004 a 2014. Em 2014, as mulheres negras ainda não haviam alcançado 40% da renda obtida pelos homens brancos. Tal situação evidencia a condição de exclusão racial e de gênero interdependente com a condição socioeconômica.

 

Por outro lado, tais desigualdades são mais cruéis ao se manifestarem no âmbito das relações pessoais e afetivas, na prática da sexualidade, no controle sobre os corpos das mulheres. O que nos choca nessa direção é a persistência e a intensidade da violência cometida contra as mulheres.  Os dados são alarmantes, no Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, num ranking de 83 pesquisados, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

 

Em 2015, o Mapa da Violência sobre assassinatos de mulheres revelou que, de 2003 a 2013, o número de mortes de mulheres negras cresceu 54%, passando de 1.864 para 2.875. Esse é o mais grave problema que todas as mulheres negras enfrentam atualmente, uma vez que se trata de uma violência também política vinculada a relações racistas e de poder. As mulheres são assassinadas por sua condição de ‘ser mulher’ como está posto na Lei do Feminicídio (9/3/2015), sobretudo porque não se "perfilam" nos padrões exigidos e dominantes. Uma brasileira é assassinada a cada 13 horas.

 

Nesse dia 8 de março de 2017, haverá uma paralisação nacional e internacional, que responde à convocatória internacional, com o grito coletivo contra a violência machista Ni Una Menos. Essa mobilização está incluída na agenda pública e política, com a participação e mobilização de mulheres militantes, acadêmicas feministas, ativistas, artistas, jornalistas, sindicalistas, mulheres de partidos políticos, que se somam a outros milhares de mulheres que querem colocar um basta aos crimes de feminicídio.

 

O feminicídio é uma forma extrema de violência que perversamente pode vir a ocorrer com qualquer mulher, independentemente de suas especificidades sociais, raciais, religiosas ou políticas. Trata-se de um crime político, pois atenta contra os corpos femininos. É uma investida contra os direitos humanos das mulheres, estimulando uma "cultura da violência" frente a qual o Estado ainda é negligente.

 

Quando os crimes de feminicídio não são devidamente enfrentados acabam por propiciar o avanço de práticas de impunidade, acentuando o que é ainda "atribuído" ao homem, isto é, o direito de exercer controle sobre "sua" mulher, sobre seu corpos e mente. Qualquer atitude da mulher que signifique um NÃO tem se convertido em motivo de ameaça, quando não de morte. Foi exatamente o ocorrido há um ano com a estudante de biologia Louise Ribeiro, assassinada no interior do campus da UnB, que disse NÃO ao relacionamento amoroso com seu namorado-assassino. Tal situação é tão grave que aproximadamente 50% dos assassinatos de mulheres têm como motivo o pedido de separação contrariando a vontade do marido ou companheiro.

 

Nós, todas as mulheres, temos que erradicar essas duas lógicas que, aparentemente contraditórias, se complementam: pois, ao mesmo tempo, exige-se o impulso da presença das mulheres nos espaços públicos (trabalho, educação, política, entre outros) e permanece a demanda persistente que reafirma seu lugar na família, de assegurar a reprodução biológica, e o controle sobre seu corpo. Essa lógica perversa e presente se manifesta ao restringir os direitos, a autonomia e a liberdade das mulheres por meio de múltiplos e complexos mecanismos/estratégias de controle – materiais e simbólicos, favorecendo a permanência e a hegemonia masculina nos diferentes espaços sociais e políticos.

 

Por fim, que nesse dia 8 de março recuperemos o sentido de lutas das mulheres pioneiras ao nos engajar na Convocatória – Ni una menos, con el dolor de la suma de víctimas que crece y crece. Para tanto, devemos exigir do Estado Brasileiro:

 

  1. Políticas públicas efetivas que disponibilizem recursos para implementar e acompanhar o Plano Nacional de Combate a Violência Contra a Mulher, enfatizando a efetividade da Lei Maria da Penha(LMP) e a aplicação da Lei do Feminicídio;
  2. Assegurar que as mulheres vítimas de violência tenham acesso à justiça e que sejam acolhidas por servidores/as qualificados/as e sensibilizados/as a compreender as lógicas que sustentam a persistência dessa violência, em suas especificidades, uma vez, que a LMP amplia a abrangência conceitual do entendimento sobre o que é a violência contra a mulher, baseada na definição bem mais complexa e multidisciplinar proposta pela Convenção de Belém do Pará (1994);
  3. Estabelecer práticas institucionais de registros estatísticos, procedimentos de investigação atualizados, pois somente com informações seguras se poderá avançar na implementação de políticas públicas de combate a violência contra as mulheres;
  4. Como um desafio urgente coloca-se a necessidade de criação de uma cultura de equidade civilizatória, contra todas as expressões de intolerância entre as pessoas e especialmente uma cultura que legitime a autonomia e liberdade das mulheres, afirmando a sua independência, reconhecimento e respeito como sujeitos plenos na vida cotidiana e na constituição da história.

 

Assim, o verdadeiro sentido de "comemorar" a jornada de 8 de março é de ressignificá-lo para construir relações mais equitativas entre homens e mulheres. Se ontem, essas foram as vítimas "preferenciais", uma vez que lhes é cobrado serem supermães na família, serem trabalhadoras e funcionárias  exemplares, hoje se tornam as protagonistas altivas e ativas para romper com tais práticas, combatendo a violência, mas sobretudo, reconstruindo uma outra história das mulheres. Portanto, Ni Una Menos!

 

[1] Ni una a menos [no título] Nome dado à convocatória internacional de mobilização iniciada pelas feministas argentinas em 2016 para combater o assassinato de mulheres.

[2] FOUQUE, Antoniette. 8 de mars 1989 à Paris. In: Il y a 2 sexes. Paris, Éditions Gallimard, 1995.

[3] GONZÁLEZ, Ana Isabel Álvarez. As origens e a Comemoração do Dia Internacional das Mulheres. São Paulo, Editora Expressão Popular: SOF- Sempre Viva Organização Feminina, 2010.

[4] Informações disponíveis no site: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/11/24/brasil-tem-maior-diferenca-salarial-entre-homens-e-mulheres.htm

[5] Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/diferenca-salarial-entre-homens-mulheres-ainda-persiste-18832252

 

Leia mais:

>> Dia Internacional da Mulher: o dia do NÃO?

 

 

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