OPINIÃO

Mauro Luiz Rabelo é professor do Departamento de Matemática, do Instituto de Ciências Exatas e Decano (pró-reitor) de Ensino de Graduação, da Universidade de Brasília. Graduado, mestre e doutor em Matemática pela Universidade de Brasília e pós-doutor pela Stanford University. Exerceu os cargos de diretor acadêmico e diretor-geral do CESPE/UnB no período 2003-2008. É membro do Comitê Técnico-Científico (CTC) da Educação Básica da Capes. Tem experiência na área de Matemática, com ênfase em Geometria Diferencial e na área de Avaliação Educacional atua nos temas avaliação de sistemas e de programas, construção e análise de itens para avaliações de larga escala (ENEM, ENADE, ENCCEJA, SAEB, PROVA BRASIL, PISA, PAS/UnB) e avaliação de competências.

Mauro Luiz Rabelo

 

No contexto da passagem do ensino básico para o superior, instalou-se durante décadas no Brasil grande polêmica sobre a estratégia de seleção/avaliação promovida pelo vestibular, sistema utilizado como porta de ingresso ao ensino superior. Esse exame firmou-se como importante ponto de referência para o próprio ensino médio, influenciando, para o bem ou para o mal, desde suas propostas curriculares até a postura dos estudantes frente a exames e provas.

 

Na atualidade, os debates e as discussões sobre o vestibular foram direcionados para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), principalmente após a implantação, em 2009, do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o que motivou a decisão da maioria das instituições federais de ensino superior de abandonarem a aplicação de seus tradicionais vestibulares e passarem a utilizar a nota obtida pelos candidatos no Enem como critério único de acesso a seus cursos de graduação. O exame vem como uma proposta de avaliação individual de desempenho por competências ao final da educação básica, tendo como eixos estruturadores a interdisciplinaridade e a contextualização dos conhecimentos expressos na forma de situações-problema a serem resolvidas pelos participantes, enquanto o Sisu é um sistema que operacionaliza o uso das notas obtidas pelos candidatos no Enem em um processo seletivo automatizado, de ampla concorrência às vagas das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) que fizerem a adesão ao sistema. Em síntese, o Enem propicia a avaliação enquanto o Sisu faz apenas a seleção.

 

No bojo dessas mudanças, foram implantadas políticas de ação afirmativa para oportunizar o acesso das minorias e das classes econômicas menos favorecidas à educação superior. Exemplo disso é a Lei Federal n. 12.711/2012, que estabelece a reserva mínima de 50% das vagas de ingresso nas IFES para estudantes que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas, em cursos regulares ou no âmbito da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), com um recorte de renda, de cor e de etnia.

 

Em termos quantitativos, as oportunidades de acesso ao ensino superior no Brasil duplicaram em dez anos, fruto de programas de expansão, passando de cerca de 3,5 milhões de matrículas em 2002 para mais de 7 milhões em 2013. Esse quadro coloca o Brasil na quinta posição mundial em termos de número de estudantes na educação superior, com aproximadamente 4% do total de 170 milhões de universitários do mundo. Apesar disso, continuamos com pouco mais de 17% dos jovens brasileiros de 18 a 24 anos de idade frequentando essa etapa de escolarização. Dessa maneira, o funil de acesso ao ensino superior, mesmo com a implantação do Enem/Sisu e das ações afirmativas, continua existindo, não tendo sido descaracterizado o mito que envolve esse momento: para muitos, ainda é um doloroso ritual de passagem, enfrentado com apreensão e temor, no qual nem sempre os mais aptos são os selecionados.

 

Foi exatamente o olhar cuidadoso sobre as pressões e as tensões emocionais sofridas pelos estudantes (que, no início do ensino médio, preocupam-se com a competitividade profissional expressa na luta pelo ingresso à universidade), e o conhecimento sobre a influência que o vestibular exercia sobre as escolas de ensino médio que levaram a Universidade de Brasília a propor a criação, em 1995, de uma forma alternativa de acesso a seus cursos de graduação – o Programa de Avaliação Seriada (PAS). Essa mudança ocorreu na mesma época em que foi implantada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n. 9.394/1996), a qual destaca em seu artigo 24 que a “verificação do rendimento escolar observará os seguintes critérios: a) avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos e quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais”. Esse artigo sintetiza o que a LDB entende pelo ato de avaliar no contexto educacional brasileiro, enfatizando a perspectiva de avaliação processual e contínua.

 

Com características muito peculiares, o PAS estabeleceu um novo paradigma na seleção de candidatos para a educação superior, pois trouxe para o acesso à universidade o conceito de avaliação processual, conforme estabelecia a LDB, e colocou a interação da universidade com as escolas do ensino médio como centro do processo, rompendo a lógica até então vigente, em que a educação básica deveria seguir o modelo ditado pelas instituições universitárias por meio de seus vestibulares. A seleção pelo PAS deixou de ser episódica, ocorrendo durante os três anos do ensino médio, provocando mudanças profundas no cotidiano das escolas e na vida dos estudantes. A proposta veio acompanhada de uma mudança substancial nos fundamentos teórico-metodológicos que norteavam os exames de acesso à educação superior, com uma avaliação interdisciplinar, contextualizada e processual, embasada no desenvolvimento de competências e privilegiando uma aprendizagem mais significativa em detrimento da aprendizagem mecânica de conteúdos. O programa visava a contribuir para uma nova configuração no perfil esperado para o futuro estudante universitário: um sujeito crítico, reflexivo e com pleno exercício da cidadania. Ao assumir esses objetivos, o PAS acabou divulgando uma nova metodologia de ensino que passou a provocar transformações nas escolas do ensino médio, especialmente as localizadas no Distrito Federal e em seu entorno.

 

Dessa forma, o PAS aproxima-se do Enem no que diz respeito à avaliação centrada em uma proposta de resolução de situações-problema, que propiciam aos participantes manifestar o desenvolvimento de capacidades fundamentais esperadas dos egressos da educação básica, mas avança e distancia-se dele ao praticar uma proposta de avaliação processual – o que permite ao participante a autoavaliação ao longo do ensino médio, que contempla questões objetivas e discursivas com características interdisciplinares efetivas, em um formato mais coerente com a avaliação formativa perseguida pelos educadores na atualidade.
O resultado disso é a seleção de um estudante mais bem preparado, com desempenho acadêmico superior ao longo de seu curso de graduação, se comparado com colegas que ingressam por intermédio de outras modalidades de acesso à universidade. Essas são algumas das razões que levam a UnB a manter o PAS como um dos processos seletivos de ingresso em seus cursos de graduação.

 

Artigo publicado originalmente na revista PASSEI Edição n. 3.

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