OPINIÃO

Luiz Martins da Silva é poeta, jornalista e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Graduado em Jornalismo, mestre em Comunicação, ambos pela UnB. Doutor em Sociologia - "sanduíche" UnB/Universidade Nova de Lisboa, pós-doutor em Serviço Social pela UnB. Ex-coordenador do projeto de extensão, SOS-Imprensa (leitura crítica da mídia), com vários livros publicados, trabalhou em diversos órgãos de imprensa. Atua nos temas: jornalismo, jornalismo público, jornalismo e sociedade, comunicação, comunicação pública, mobilização e cultura de paz, comunicação e mobilização social, cidadania planetária, cultura, mídia e política, ética na comunicação.

Luiz Martins da Silva



Pode ser que seja mais uma onda discursiva. Mas, os animais estão em alta, desde os queridinhos domésticos aos destituídos de dignidade no seu ambiente. Cruentas as cenas televisivas de onças nordestinas farejando vestígios de água nas areias do sertão. No contraponto, o lenitivo da transmissão ao vivo da exitosa vinda o mundo do filhotinho de girafa no Zoo de Brasília. O parto e o alívio da rapidez nos primeiros passos, senão, virtual presa imediata.


Estaria em curso um zooculto, quem sabe, um mecanismo de transferência remanescente de um certo “pensamento selvagem” sob o qual as fratrias se identificavam a totens, por sua vez estruturantes sistêmicos de divisão social, parentesco, papeis, tabus e rituais. Na era da reprodutibilidade, campo outros de significações zoomórficas; outros clãs, os dos mascotes icônicos de times, copas, grifes e até sinais de sorte na contravenção: “Sonhar com rei, dá leão”.


Algo que certamente ultrapassa os códigos mercantis do valor, força advinda dos emascaramentos analógicos e teatrais representativos de situações e dramas cotidianos, sintoma de uma curiosa categoria ontológica – o sentimento ético para com outros seres que não os humanos, tipologia para além dos arquetípicos ligações talismãs e da própria “sustentabilidade”.


Paradigma ético ainda indefinido e até paradoxal. Sublimamos a degustação de quem matamos quanto com equivalentes icônicos: de um lado, o filão mercantil da indústria de alimentos; de outro, o filão sutil das representações arquetípicas, porque afetivas e nutritivas de demanda existenciais e afetivas. Uma nova onda discursiva acena para uma terceira dimensão ética, a de uma cidadania planetária para todos os seres, uma espécie de holoética; uma versão 3.0, com relação à antro-ética de Edgar Morin (2.0); idem, com a macroética de Karl Apel (1.0). Os dois etos anteriores ainda mantinham a cidadania planetária centradas no ser humano (antropocentrismo).


De prontidão, argumentos de que sequer os direitos humanos foram consolidados. Luxo, portanto, importar-se com o sacrifício de outros seres sencientes quando a fome paira sobre 20 milhões de pessoas no Planeta. Há muito, não estamos diante de simples maniqueísmo, ou nós ou eles.  Não deixamos para trás a simbologia decorativa da Natureza, muito pelo contrário. A preservação e o respeito para com os outros seres já não se orientam por estritos critérios de racionalidade técnica. Hora, portanto, de reconhecermos indícios de que essa imensa abstração chamada Humanidade encontrou uma forma a mais de se humanizar: o amor aos animais e, por extensão, aos seus ambientes.


Pode até ser que por algum desvio atípico da nossa espécie, venhamos a nos condoer mais pelo sofrimento dos 20 milhões de cães abandonados no Brasil do que pelas 20 milhões de crianças em variadas condições de risco ou precariedade. É preciso, no entanto, admitir que para além das circunstâncias e contingências relativas a disparidades e desequilíbrios ergue-se no horizonte um novo paradigma universal de decoro. Nada será destruído por simples aversão, ignorância ou sensação de que o desconhecido pode ser o próximo estorvo. Uma outra deixa, o Youtube está repleto de vídeos inacreditáveis em que animais dotados de humanidade, enquanto humanos são mostrados em sua bestialidades hilárias ou revoltantes.


Tempo, portanto, de intuir uma cidadania planetária dilatada e com base em novo “horizonte ético. Recordo, aqui, um episódio antigo, mas, já referencial. Conta-se que ao visitar o político Luiz Carlos Prestes, o advogado Sobral Pinto peticionou com a seguinte pérola: rogo amparo ao meu cliente conforme a lei de proteção aos animais.

 

Presentemente, multidões se cotizam tanto para proteger baleias: contra a pesca, contra a tradição da caça sanguinária própria do verão nas ilhas Feroe e protetora daquelas que inexplicavelmente encalham.  No Brasil, assistimos a toda uma polêmica em torno da crueldade ou regionalismo cultural em torno da vaquejada. O fato é que há indícios de que estaríamos diante de um paradigma discursivo em que, por vezes, ficamos em dúvida se nos chocam mais as cenas de maus tratos de animais do que de humanos. Inevitável a lembrança do Sermão de Santo Antônio aos Peixes (Padre Vieira): dotados de razão, os humanos ignoravam a palavra de Deus; supostamente irracionais, os peixes vieram ouvir a pregação.

 

James Dickey (1927-1997), laureado poeta norte-americano, já nos havia ironizado no poema “O Céu dos Animais” a pretensão humana de exclusividade para um bem-estar no Além. Uma nova questão ética se apresenta: iriam para o Céu aqueles humanos que embora bons entre si foram maus para com outros seres? Platão, mais uma vez, comparece. Pode ser bom alguém que para chegar ao bem fez um mal a outrem?

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